Artículo de investigación científica y tecnológica

Afetividade, reconhecimento e menosprezo na cotidianidade de pessoas acompanhadas por um serviço de saúde mental em Brasil1

Affectivity, recognition and contempt in the daily lives of people treated by a mental health service in Brazil

Recibido: 2 de agosto de 2023 / Aceptado: 24 de agosto de 2023 / Publicado: 1 de noviembre de 2024

Isis Lima da Silva y Rafael Andrés Patiño

Como citar este artigo em APA:

Lima da Silva, I., Patiño, R. A. (2024). Afetividade, reconhecimento e menosprezo na cotidianidade de pessoas acompanhadas por um serviço de saúde mental em Brasil. Poiésis, (47). https://doi.org/10.21501/16920945.4777

Resumo

A Modernidade inaugurou uma nova forma de conceber a loucura como doença, confinando as pessoas diagnosticadas com transtornos mentais em hospícios e manicômios. Fruto de questionamentos a essas práticas de institucionalização, novas estratégicas de cuidado em saúde mental surgiram na segunda metade do século XX. Apesar dos avanços, as pessoas diagnosticadas com transtornos mentais ainda são submetidas a práticas de menosprezo e exclusão social na cotidianidade. Neste trabalho discutimos experiências de reconhecimento e menosprezo, entre usuários de um CAPS II na Bahia, usando o método da foto-provocação. Entre os resultados, destacamos que as experiências de menosprezo ferem a autoestima, enquanto o reconhecimento afetivo contribui para o fortalecimento da autoimagem positiva e a possibilidade de exercício da cidadania. Assim, vínculos fundamentados na dedicação amorosa fortalecem a autonomia e facilitam laços sociais baseados na confiança e no respeito, que contribuem nos processos de cuidado em saúde mental.

Palavras-chave:

Estigma; Afetos; Exclusão social; Loucura; Reconhecimento intersubjetivo; Saúde mental.

Abstract

Modernity inaugurated a new way of conceiving madness as a disease, confining people diagnosed with mental disorders in hospices and asylums. As a result of questioning these institutionalization practices, new mental health care strategies emerged in the second half of the 20th century. Despite advances, people diagnosed with mental disorders are still subjected to social exclusion practices in everyday life. In this work, we discuss experiences of recognition and disrespect in the affective sphere, among users of a CAPS II in Bahia, using the photo-provocation method. Among the results, we highlight that the experiences of contempt and abuse hurt self-esteem, while affective recognition contributes to the strengthening of a positive self-image. Thus, bonds based on loving dedication strengthen autonomy and facilitate social bonds based on trust and respect, which contribute to mental health care processes.

Keywords:

Emotions; Intersubjective recognition; Madness; Mental health; Social exclusion; Stigma.

Resumen

La modernidad inauguró una nueva forma de concebir la locura como enfermedad, recluyendo en hospicios y asilos a las personas diagnosticadas con trastornos mentales. Durante la segunda mitad del siglo XX tales prácticas fueron objeto de cuestionamientos, que dieron origen a nuevas estrategias de atención a la salud mental. A pesar de los avances, las personas diagnosticadas con trastornos mentales siguen siendo objeto de formas de irrespeto y prácticas exclusión social en la vida cotidiana. En este trabajo, discutimos experiencias de reconocimiento y menosprecio afectivo, entre usuarios de un CAPS II en Bahia, utilizando el método de foto-provocación. Entre los resultados, destacamos que las experiencias de menosprecio y abuso hieren la autoestima, mientras que el reconocimiento afectivo contribuye para el fortalecimiento de una autoimagen positiva. Así, los vínculos fundamentados en lazos afectivos positivos fortalecen la autonomía y facilitan vínculos basados en la confianza y el respeto, que contribuyen a los procesos de atención a la salud mental.

Palabras clave:

Emociones; Exclusión social; Locura; Reconocimiento intersubjetivo; Salud mental.

Introdução

Apesar de que no Brasil as políticas e práticas de cuidado na saúde mental vêm se transformando na busca por um modelo que reconheça as pessoas diagnosticadas com transtornos mentais, como sujeitos de direitos; no dia-a-dia, as pessoas diagnosticadas com transtornos mentais ainda sofrem distintas formas de menosprezo e discriminação. Estigmatizadas, sofrem ofensas, experiências de exclusão social, privação de direitos e enfrentam resistências para serem aceitos nos distintos cenários de troca social. Essas experiências de desrespeito associadas a um aspecto da sua subjetividade podem ser interpretadas como tentativas de causar danos, tanto físicos como morais, ferindo sua integridade pessoal e afetando sua autoestima (Honneth, 2003).

Neste artigo, nos concentramos na análise de experiências de reconhecimento e menosprezo intersubjetivas, a partir de narrativas produzidas por sujeitos acompanhados por um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado em uma cidade da Bahia, Brasil, identificando como tais experiências cotidianas afetam a subjetividade dos participantes, sua percepção de si mesmo e as relações com as alteridades em distintos cenários de socialização.

O trabalho se origina de uma pesquisa de mestrado intitulada: Experiências de reconhecimento e menosprezo: o cotidiano de usuários do CAPS II de Porto Seguro. No artigo, situamos brevemente o contexto histórico no qual a loucura passa a ser considerada uma doença e os movimentos que impulsionaram novas formas de tratamento de pessoas com transtornos mentais, nas últimas décadas, especialmente no Brasil. Posteriormente apresentamos a teoria do reconhecimento intersubjetivo, que fundamenta a análise. Nos resultados, o texto foca nas experiências de menosprezo e reconhecimento afetivo, predominantemente pertencentes ao âmbito que Honneth (2003) denomina esfera do amor.

Loucura e modernidade

O projeto moderno favoreceu a valorização da subjetividade e da individualidade, inaugurando novas experiências de relação dos sujeitos consigo mesmos. Nesse processo, a modernidade instalou “uma tensão entre a constituição de novas subjetividades, por um lado, e seu domínio, controle e gestão dentro do marco dos valores modernos, por outro” (Patiño & Faria, 2019, p. 428). Segundo Arroyave Alvaréz (2011), essa contradição é uma marca do projeto moderno porque ao mesmo tempo que valoriza a individualidade e as subjetividades, normatiza os padrões de comportamento socialmente aceitos, excluindo os sujeitos que escapam a tais cânones.

Para entender o tratamento que recebem tais alteridades não reconhecidas ou valoradas negativamente, Goffman (1981) utiliza o conceito de estigma. Os gregos entendiam os estigmas como a sinais corporais reveladores de algo diferente ou ruim sobre o status daquele que o apresentava. Durante a modernidade, o estigma associou-se a uma desgraça que pode estar atrelada a caraterísticas pessoais e sociais. O sujeito estigmatizado é identificado por essa marca que o menospreza e oculta seus outros atributos positivos (Goffman, 1981), tornando-se uma alteridade não reconhecida.

Dentro das subjetividades que escapam dos valores dominantes da modernidade, encontra-se a loucura; um fenômeno que questiona o reinado da razão como pedra angular na definição da verdade e do sujeito moderno. Esse projeto cultural, político e econômico, categoriza a loucura como doença mental, nomeando o juiz e o médico como as autoridades que vão cuidar do destino e tratamento das pessoas diagnosticadas como transtornos mentais, desviantes dos ideais positivamente valorados para definir a subjetividade (Foucault, 2002).

Justificando-se na sua suposta periculosidade, a modernidade criou os manicômios orientados ao tratamento e exclusão das trocas sociais, dessas subjetividades incompreendidas e sintomáticas para a ordem estabelecida. Sob o estigma de anormal e perigoso, o doente mental é destituído de qualquer possibilidade de exercer sua cidadania na nascente sociedade de direitos (Foucault, 2002).

As tecnologias de poder desenvolvidas dentro dessas instituições totais — onde os indivíduos são separados da sociedade mais ampla e são submetidos a “uma vida fechada e formalmente administrada” (Goffman, 1961, p. 11) — desenvolveram-se a partir de uma perspectiva intensamente biomédica, que buscava silenciar os sintomas, utilizando técnicas como lobotomias, o uso excessivo de medicamentos, eletrochoques etc.

Os hospícios e suas práticas, começaram a ser questionados como tecnologias de poder, na segunda metade do século XX. Algumas críticas ao modelo apontavam os manicômios lotados de internos desprovidos da possibilidade de exercerem sua autonomia, submetidos a práticas que buscavam conter, dominar e excluir (Foucault, 1979), atentando contra a dignidade humana.

No Brasil, os primeiros debates na tentativa de ruptura com a atividade psiquiátrica manicomial dominante surgiram entre as décadas de 1960 e 1970, inspirados por experiências europeias e latinoamericanas (Fassheber & Vidal, 2007). Por esta época, começa uma discussão sobre novas práticas de cuidado em saúde mental, tendo destaque a psiquiatria democrática italiana e o pensamento crítico fundamentado nas obras de Michael Foucault, Erving Goffman e Franco Basaglia. Esse movimento crítico, motivou a criação de alternativas ao modelo manicomial, entre elas a integração comunitária e as práticas de cuidado de doentes mentais praticadas por famílias na França (Jodelet, 2005); ou a técnica dos grupos operativos, desenvolvida por Pichón-Rivière no Hospital Las Mercedes da Argentina. Sob algumas dessas influências, o movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira promoveu a construção de novos saberes, discursos e práticas de cuidado dentro da saúde mental no Brasil (Nascimento, 2009).

A Reforma Psiquiátrica efetuada no Brasil tem buscado implementar uma estratégia de cuidado em Saúde Mental, implantando mudanças no campo assistencial com a criação de serviços abertos e comunitários. Este processo favoreceu um campo de tensão pelos direitos e respeito das pessoas atendidas no âmbito da saúde mental, fator este que, por sua vez, abriu a porta para a nova rede de cuidado em saúde mental, tendo os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como dispositivos centrais de cuidado.

O Centro de Atenção Psicossocial como dispositivo de cuidado em saúde mental

No Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a teia de dispositivos de cuidado em saúde mental construída a partir da Reforma Psiquiátrica promovida pela luta antimanicomial no Brasil, que tem como propósito a atenção à saúde para pessoas com transtorno mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A construção da RAPS preconiza uma lógica de cuidado que respeite os Direitos Humanos, garantindo a autonomia, a participação, a promoção e fortalecimento de laços sociais, e o exercício de cidadania, sob o apoio de uma equipe multiprofissional, em um tratamento com orientação comunitária e territorial.

Nos CAPS, o cuidado da saúde mental não se deve reduzir à perspectiva biomédica, mas incorpora uma perspectiva psicossocial, que presta especial atenção à dimensão emocional no tratamento, considerando fundamental a promoção de vínculos afetivos e sociais, dentro do processo de reconhecimento das pessoas em tratamento como legítimos sujeitos de direitos.

Ao contrário do tratamento manicomial, que produz processos de exclusão social e rompimento dos vínculos emocionalmente significativos para os sujeitos, o modelo substitutivo cria uma alternativa à internação e favorece a realização de atividades comunitárias, visando a reintegração social e contribuindo para a ressignificação da história pessoal (Pereira, 2007). Questionar a experiência afetiva cotidiana das pessoas participantes, nos permite refletir se as ações do CAPS têm conseguido favorecer a construção de laços sociais e o desenvolvimento de relações afetivas; ou, se pelo contrário, tornou-se outra forma de institucionalização com práticas distintas às dos hospísios, contudo, sem possibilitar ferramentas efetivas para o exercício de cidadania e da autonomia afetiva e pessoal. Questionamos ainda se as antigas técnicas de controle da subjetividade estão sendo substituídas por outras mais sutis, mas mais eficazes.

Nesta análise focamos nos sentidos das experiências afetivas dos participantes com familiares, amigos e parceiros emocionais; entendo as relações afetivas de amor e de amizade, como centrais nos processos de reconhecimento intersubjetivo, que fundamentam as relações dos sujeitos consigo mesmos e formam a base para as distintas formas de autoestima (Honneth, 2003). Para tal fim, descrevemos as práticas cotidianas dos participantes em distintos espaços sociais, identificando e analisando os sentidos de experiências de menosprezo e de reconhecimento narradas pelos participantes, em distintos contextos de interação social.

Breve síntese da teoria do reconhecimento intersubjetivo

Para compreender como os/as participantes entendem o lugar social que ocupam e a significação que lhe dão a suas experiências afetivas, tomamos como referência a teoria do reconhecimento intersubjetivo de Axel Honneth (2003), entendendo que a mesma permite realizar uma leitura psicossocial das experiências de menosprezo e reconhecimento afetivo. Honneth (2003) afirma que o reconhecimento intersubjetivo é condição da vida social e da construção das formas de autorrelação, porque através do reconhecimento recíproco cada um de nós estabelece uma concepção prática da relação consigo mesmo e com os parceiros e destinatários sociais; mas, ao mesmo tempo, a partir do reconhecimento positivo das nossas características pelos membros da sociedade, construímos as distintas formas de autoestima, que permitem realizar as trocas sociais numa condição de igualdade e respeito mútuo.

O autor descreve três formas de reconhecimento intersubjetivo: a primeira é o amor, que tem na dedicação emotiva, construída dentro dos laços afetivos no contexto de relações primárias familiares, românticas e de amizade, a sua forma de reconhecimento. Baseado em Winnicott e Hegel, o autor lembra que a criança inicia sua vida em um estado de alienação simbiótica com os cuidadores. Somente o processo de separação permitirá que emerja um sujeito que se diferencie como ser autônomo. Nessa primeira relação, a forma de reconhecimento é a dedicação emotiva; tal vínculo funda as bases para a construção da autoconfiança. Esta esfera de reconhecimento é a base para o desenvolvimento das demais formas de autoestima, que lhe permitem ao sujeito estabelecer uma relação positiva consigo mesmo.

Ainda conforme Honneth (2010), a segunda forma de reconhecimento outorga um status de igualdade entre os membros de uma mesma sociedade no âmbito das relações jurídicas. Esta forma de reconhecimento se dá quando os indivíduos sentem que seus direitos civis, políticos, sociais etc., são respeitados, possibilitando o reconhecimento do sujeito moralmente imputável. O reconhecimento jurídico nesta esfera é a base para do autorrespeito.

A última esfera de reconhecimento é a solidariedade. Fundamentada nos valores compartilhados por uma comunidade, o reconhecimento nesta esfera se dá pela estima social, quando os sujeitos percebem que são positivamente valorados em suas escolhas, formas de vida, características identitárias e subjetivas. Esta forma de relação fundamenta a autoestima, que representa a confiança em si, nas realizações pessoais e na aquisição de características estimadas positivamente na comunidade. A discriminação que sofrem pessoas com transtorno mental é uma forma de menosprezo dentro dessa esfera.

Se as experiências de reconhecimento permitem que o sujeito desenvolva uma autorrelação de autoconfiança fundamental para a vida social, a privação do reconhecimento age em sentido inverso. A experiência de menosprezo consiste na percepção que um sujeito tem de que está sendo ferido em sua integridade moral de forma intencional. Na esfera do amor, constituem experiências de menosprezo ou desrespeito as formas de humilhação física presentes nos maus tratos, na tortura, na violação, o abandono etc. Uma experiência como essa fere a autoconfiança e estremece a possibilidade de estabelecer laços sociais fundamentados na confiança mútua. Algumas práticas usadas em hospitais psiquiátricos, como os eletrochoques, o uso de camisas de força, o isolamento etc., entram nesta categoria.

Já na esfera do direito, o menosprezo aparece na forma de violação e privação de direitos, interferindo com exercício pleno da cidadania e da autonomia. O desrespeito nesta esfera atinge o sentimento de autorrespeito, impedindo que o indivíduo se reconheça enquanto cidadão em igualdade de condições com os outros. Nos tratamentos manicomiais as pessoas são destituídas da sua dignidade e dos seus direitos como cidadãos livres, autônomos e com capacidade para decidir sobre sua própria vida. As pessoas diagnosticadas com transtornos mentais também são frequentemente excluídas nos âmbitos laboral e educativo.

Em relação à esfera da solidariedade, as experiências de menosprezo podem ser compreendidas como a falta de valorização positiva de atributos pessoais, identidades ou formas de vida, características físicas, sociais, subjetivas etc. Evidentemente, a representação social do indivíduo com transtorno mental como um sujeito anormal e perigoso, predominante na modernidade, teve como consequência sua valorização negativa, discriminação e menosprezo dentro dos sistemas de valoração social contemporâneos. As formas de exclusão de sujeitos ou coletivos valorizados negativamente em contextos sociais determinados (incluídas as pessoas diagnosticadas com transtornos mentais), em casos extremos, podem chegar a ser objeto de práticas de extermínio, como, por exemplo, o foram durante o Holocausto.

Reconhecendo que existem conexões e vínculos entre as formas de menosprezo nas três esferas referidas, concentraremos esta análise nas experiências de menosprezo e reconhecimento na esfera do amor.

Procedimentos metodológicos

Este trabalho se deriva de um estudo de caso qualitativo, que privilegia a perspectiva psicossocial para interrogar as experiências cotidianas de reconhecimento e menosprezo de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais, mantendo um diálogo interdisciplinar com a filosofia e a sociologia (especialmente com a obra de Axel Honnneth). O método escolhido para o trabalho de campo foi a foto-provocação. Estratégia conhecida no âmbito da pesquisa qualitativa anglosã como photo-elicitation, o método combina a fotografia e a entrevista como técnicas, enfatizando a autonomia dos participantes para eleger seu ponto de vista sobre os temas explorados (Corredor-Álvarez & Iñiguez-Rueda, 2016). A fotografia funciona neste caso, como ponto de partida para um diálogo conversacional e faz parte da produção de sentido. Por sua vez, as narrativas produzidas nas entrevistas devem ser compreendidas como um sistema conversacional, que objetiva conduzir o sujeito a significados de sua experiência (Patiño Orozco, 2013). A técnica consiste no desenvolvimento de entrevistas utilizando fotos para provocar diálogos e narrativas sobre o assunto em questão (Corredor-Álvarez & Iñiguez-Rueda, 2016), neste caso, o cotidiano dos usuários do CAPS II de Porto Seguro-BA. Deste modo, buscamos incitar à reflexão, não somente a apresentação das fotos ou sua descrição.

Solicitamos que os entrevistados tirassem, durante uma semana, fotografias de momentos, lugares e pessoas (sempre solicitando autorização) significativas e que representassem experiências positivas ou negativas. Em um segundo momento foi realizada uma entrevista semiestruturada, na qual cada participante selecionava as fotos que representassem situações em que se sentisse bem tratado e respeitado, e outras em que fosse maltratado ou desrespeitado, no seu cotidiano. As e os participantes relataram situações associadas a contextos familiares, relações afetivas, direitos, lazer, trabalho, educação, medicação, tratamento e outros.

O uso desta técnica permitiu a integração de dimensões sociais, afetivas, cognitivas, históricas e culturais que constituem a subjetividade, ao mesmo tempo em que possibilitou a construção de narrativas visuais e simbólicas pautadas pela autonomia e pela escolha dos participantes da pesquisa.

A escolha dos sujeitos participantes esteve orientada por um critério intencional teórico, guiado pelos objetivos do estudo. Assim, adotamos critérios de escolha construindo um perfil de alta definição (Nicolaci-da-Costa, 2007), dentro do qual os sujeitos deviam ser em um CAPS, ter sido diagnosticados com transtorno mental, encontrar-se em um período de estabilidade no quadro clínico e que pudessem relatar experiências de menosprezo e reconhecimento nos espaços sociais.

Participaram do estudo cinco pessoas, quatro homens e uma mulher, atendidos pelo CAPS II de Porto Seguro, sendo dois entrevistados com diagnósticos de esquizofrenia e três participantes com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Realizamos as entrevistas de forma individual e em duas sessões, dentro CAPS.

Após a transcrição, agrupamos as narrativas para sua análise em uma unidade hermenêutica no programa Atlas.ti. O processo de codificação esteve orientado pelos princípios da análise de conteúdo que, segundo Moraes (1999), constitui uma estratégia para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos.

Concretamente, a análise esteve guiada por categorias orientadoras construídas em diálogo com a Teoria do Reconhecimento Intersubjetivo de Axel Honneth. Neste caso, focaremos em duas: experiências de reconhecimento e experiências de menosprezo no âmbito das relações afetivas familiares, de amor e amizade. A partir disto emergiram outras categorias, descritas na análise.

Os participantes da pesquisa tiveram o apoio da equipe multiprofissional do CAPS durante todo o tempo, pudendo se retirar da pesquisa se assim o desejassem. Para manter o anonimato dos e das participantes, os nomes foram modificados. Todos os procedimentos legais e éticos para a pesquisa com seres humanos foram seguidos, e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Experiências de Reconhecimento na Esfera do Amor

Honneth (2003) afirma que por “relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades e de relações pais/filho” (p. 159). As relações primárias são fundamentais para a construção da autoconfiança, já que a mesma se constitui a partir das relações de segurança afetiva que estabelecemos com os outros. A seguir, apresentamos as experiências de reconhecimento relatadas pela/os participantes nessa dimensão afetiva, sempre levando em consideração que as relações intersubjetivas envolvem uma ou mais esferas do reconhecimento ao mesmo tempo.

Pablo tem 32 anos e foi diagnosticado com transtorno afetivo bipolar. Realiza acompanhamento no CAPS há 10 anos, encontra na família um lugar em que é valorado pela realização de tarefas domésticas delegadas. Sobre sua família, ele afirma:

Me respeitam. Eles me tratam bem, graças a Deus, eu não dou motivo pra as pessoas desconfiarem de mim. Acordo 6:30h pra cuidar de mim, para cuidar dela [da minha mãe] e depois vou pro CAPS. (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018)

A responsabilidade de cuidado que Pablo assume com sua mãe reflete também a importância do vínculo afetivo com ela. A mesma sofreu amputação em uma das pernas como consequência de diabetes, e ele desempenha funções de cuidado que são valorizadas pelo grupo familiar, segundo ele mesmo relata:

A Unidade de Pronto Atendimento (UPA)! Aí é quando mãe não tá muito bem assim, tá se queixando de alguma coisa levo ela na UPA... Me sinto útil de cuidar dela, meus irmãos me respeitam. (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018)

A importância da dimensão psicossocial no tratamento em saúde mental já havia sido indicada por Enrique Pichon-Rivière (1998), no seu clássico trabalho no Hospício de Las Mercedes, no qual os pacientes menos comprometidos ajudavam os pacientes mais comprometidos. O famoso psicanalista percebeu que essa mudança de papel social, por si só, colaborava para a melhora do quadro dos internos. Analogamente ao caso descrito por Pichon Rivière, Pablo se reconhece no papel cuidador, que ajuda e cumpre com uma função dentro de sua família. A valorização desse papel fortalece sua percepção positiva de si mesmo.

Adicionalmente, Pablo se sente reconhecido na família porque colabora economicamente com as despesas de casa, usando o Benefício de Prestação Continuada2 que recebe: “o salário não é só pra meu uso, e assim eu dou uma ajuda pra ajudar nas despesas da casa” (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018).

Lia, 38 anos, foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar e faz acompanhamento no CAPS há 04 anos. Para ela, a percepção de que alguns familiares se interessam por ela e lhe demonstram afeto é motivo de orgulho. Sobre a atitude de sua família a respeito dela estar diagnosticada com transtorno mental, Lia diz:

ele (primo) manda mensagem perguntando se eu tô bem, perguntando se eu tô ótima. A reação foi muito boa, eles não têm preconceito, não. Falou que eu tenho que procurar a melhora para mim. (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018)

A fala de Lia evidencia que ela percebe que pode ser discriminada por frequentar o CAPS e ter um diagnóstico de transtorno mental. O apoio de sua família lhe permite se sentir segura para continuar o tratamento, Esta atitude dos primos é interpretada por Lia como uma forma de reconhecimento e de ausência de “preconceito” em relação a que ela frequente o CAPS. Nesse sentido Cardoso et al. (2012) apontam a importância das famílias assumirem responsabilidades no cuidado em saúde mental, colaborando com a qualidade de vida dos sujeitos e proporcionando segurança afetiva.

Lia afirma se sentir respeitada quando sua família compreende e apoia que ela realiza um acompanhamento em saúde mental. Esta relação de amor, associada ao cuidado, fortalece a autoconfiança porque Lia percebe que conta com uma dedicação emotiva estável, que não perde em decorrência de ter sido diagnosticada com um transtorno mental. Para Honneth (2003), a experiência mútua de liberação e ligação emotiva simultânea a outra pessoa é o que permite a afirmação da autonomia, sendo o reconhecimento um elemento constitutivo do amor.

Surgiram ainda falas ligadas a relações afetivo-sexuais. Dentre os cinco entrevistados, Lia e Tadeu são casados. Tadeu, 60 anos, foi diagnosticado com esquizofrenia e é acompanhado pelo CAPS há 15 anos. Ele é casado há três anos. Sente-se satisfeito de ter uma casa e morar com a companheira. Emocionado, diz: “vive eu e minha mulher, me sinto feliz de eu ter uma casa. Ela tem transtorno mental também” (Tadeu. Comunicação pessoal, 25 de agosto de 2018).

A emoção de Tadeu está relacionada com a intensidade com que ele valoriza a possibilidade de ter uma família e uma casa própria, pela segurança que moradia e família representam para ele. O exercício da cidadania passa também pelo acesso a habitação e a possibilidade de ter uma relação afetiva estável. A cidadania revela ao sujeito a necessidade de se responsabilizar, pois Tadeu, ao assumir o cuidado com a casa e família, adquire responsabilidades diversas sobre si e sobre o outro.

Os demais entrevistados são solteiros. Pablo relata que teve namoradas, mas por iniciativa da garota. Ele se considera tímido e acredita que isso limita suas relações amorosas, afirmando: “as namoradas que eu já tive, num tô dizendo que eu sou bonito, mas elas que chegaram até mim, a maioria, eu era muito tímido, eu tive poucas namoradas” (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018).

O seu relato mostra que as relações amorosas lhe permitem perceber algo positivo de si mesmo: ao afirmar que não é bonito, implicitamente reconhece que algo nele atrai as mulheres com as que namorou. Sabe que pode ser atrativo, construindo desta forma uma autoimagem positiva de si.

Pablo também usa as redes sociais como estratégia para driblar a “timidez” e manter relacionamentos afetivos amorosos. Ele afirma que tem uma namorada virtual:

Eu tenho uma [namorada] virtual, eu acho que dá menos trabalho que uma real, porque na internet a gente não tá vendo a pessoa mas sabe que existe, pode ser fake ou não, ela eu já vi, conheço já há algum tempo. Por enquanto é só na internet por causa dos horários do trabalho dela. (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018)

Ele ressalta que é prazeroso se relacionar desta forma, alegando ser “menos trabalhoso” do que ter uma namorada “real”. O relato de Pablo sobre a manutenção de relacionamentos afetivos pela internet mostra a criatividade que possui para driblar as inseguranças que o encontro físico direto lhe provoca.

João, 36 anos, possui um diagnóstico de esquizofrenia e frequenta o CAPS há 08 anos. Mora com a mãe, irmãs, cunhados e sobrinhos, tem uma filha de sete anos de um relacionamento anterior. Afirma sentir falta de uma pessoa para conversar, pois, para ele: “o relacionamento entre duas pessoas é muito bom, eu sinto muita falta, nem é do sexo, sexo pra mim não é muito importante. É questão de ter uma pessoa pra conversar quando eu for dormir, ter alguém”. Nesse depoimento João evidencia o valor que lhe outorga à dedicação emotiva, destacando como mais importante que a relação sexual. A população diagnosticada com transtorno mental tem o direito de viver sua sexualidade e afetividade sem discriminação (Possas et al., 2008), no mesmo sentido apontado também na política de saúde mental após a Reforma Psiquiátrica no Brasil.

As pessoas participantes compartilharam outros relatos referentes ao uso da internet para estabelecer relacionamentos. Consideramos pertinente discutir como utilizam as tecnologias das redes sociais como estratégia para construir laços afetivos na segurança do espaço virtual. Esses meios de comunicação, facilitam o estabelecimento de vínculos driblando. Com essa estratégia os participantes driblam o risco e a insegurança provocada por experiências de discriminação nos encontros face a face.

Pablo afirma que utiliza a internet para ter acesso às notícias, mas tem seu interesse preferencial pelos sites de interação social, pois “[entro na internet] quando eu quero ver, ler alguma notícia, mas ultimamente fico mais no bate papo do Facebook, no Whatsapp” (Pablo. Comunicação pessoal, 18 de junho de 2018). Ele sai pouco à noite e não frequenta festas e bares, sendo a internet uma grande distração.

O uso da internet para Pablo é uma estratégia para estabelecer amizades e redes românticas de uma forma protegida dos possíveis estigmas que o transtorno mental carrega? É evidente que a internet e as redes sociais proporcionam um espaço de recriação identitária, onde não necessariamente se revelam as características valoradas negativamente. Esta dimensão das relações afetivas e os usos da internet por pessoas diagnosticadas com transtorno mental é um campo a ser explorado mais amplamente, que carece de pesquisas.

Outra forma de reconhecimento na dimensão afetiva observa-se nas atividades realizadas em família. Lia relata que adora sair, dançar e que acompanha o esposo em shows, pois se sente muito feliz. Ela faz referências a atividades de lazer em companhia do esposo, nos espaços e nas relações de trocas sociais. Estas trocas sociais fazem parte do exercício da cidadania e do processo de inclusão social das pessoas com transtorno mental, preocupação central do modelo psicossocial (Saraceno, 2010).

Entre as práticas de lazer ligadas a vínculos familiares, João relata as caminhadas realizadas em companhia da mãe. Esta experiência lhe proporciona prazer: “gosto muito de ver o sol nascer porque eu acho que ver o pôr do sol todo dia de manhã eu vou me fortalecer com o pensamento positivo. De vez em quando eu ando com minha mãe até a orla e volto.” (sic) (João. Comunicação pessoal, 18 de maio de 2018).

Embora presentes, a maioria das experiências de reconhecimento intersubjetivo fundamentadas na dedicação emotiva relatadas pelos participantes, se referem ao núcleo familiar, evidenciando poucas trocas sociais ou construção de vínculos de amizade. Ao mesmo tempo, os vínculos positivos descritos revelam a importância de lugares de segurança, nos quais não se sentem discriminados ou menosprezados. Em especial o uso da internet é uma forma de se proteger de experiências de menosprezo que a vida cotidiana, escondendo a dimensão da sua subjetividade que imaginam que será rejeitada nas trocas sociais.

Experiências de Menosprezo na Esfera do Amor

Da mesma forma como o sistema de relações sociais pode contribuir para o reconhecimento positivo de sujeitos e grupos sociais, as dinâmicas sociais podem estar fundamentadas no desrespeito de subjetividades não valorizadas positivamente. Tais subjetividades e formas de ser podem ser objeto de formas de menosprezo no sistema de relações intersubjetivas. As formas de desrespeito são significadas como ameaças à integridade pessoal, que produzem feridas morais porque constituem uma forma de humilhação e de injustiça.

A família tem um papel fundamental na vida das pessoas com transtorno mental, visto que muitas assumem o cuidado e acompanhamento, inclusive no CAPS. Nesse sentido os participantes relatam que o apoio da família sobre o transtorno é fundamental para eles, por isso a falta desse apoio produz uma ferida subjetiva.

João relata que seus familiares não compreendem seu adoecimento e remetem sua doença a questões religiosas. Neste caso, as explicações mágico-religiosas da loucura como algo “sobrenatural”, que outros estudos também documentam (Cirilo & Oliveira Filho, 2008), são uma tentativa da família de produzir sentidos sobre o evento inexplicável para eles. No entanto, essa explicação, que exerce uma função para os familiares, contribui com a estigmatização e percepção negativa das pessoas diagnosticadas com doenças mentais. João afirma:

Minha família acha que esse problema veio de uma brincadeira, veio de coisa de satanás e tal, coisa religiosa. Nesse sentido eles não me ajudam, eles complicam a situação mais, eles não têm conhecimento do fato que é a doença realmente. (João. Comunicação pessoal, 18 de maio de 2018)

João percebe que sua mãe o vê como um “demônio do satanás” nos momentos das crises. Este tipo de colocação é avaliada como uma tentativa de desqualificação, que fere sua autoimagem. Para ele seria melhor se entendessem que se trata de um problema de saúde mental.

Ainda refletindo sobre essas possíveis lesões na identidade, Lia apresenta uma situação complexa em relação à mãe do seu neto. Relatou ser impedida de ver a criança, por ser considerada violenta e incapaz por ter um transtorno mental. Este relato reflete a representação do sujeito com transtorno mental como um sujeito perigoso. Segundo Lia, ela “não quer deixar levar meu neto para casa por causa do meu problema, ela fala que se acontecer alguma coisa com meu neto a culpada vai ser eu” (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018).

Este relato evidencia como a periculosidade ainda está presente na representação social da loucura. Embora a maior parte de crimes que envolvem violência sejam cometidos por pessoas que não possuem um diagnóstico de doença mental, as pessoas com transtorno mental são objeto de um imaginário que provoca medo e desconfiança. Neste caso, essa representação/estigma do louco perigoso orienta a decisão de evitar que Lia possa exercer seu direito a estabelecer um vínculo afetivo com o neto.

Cirilo e Oliveira Filho (2008) afirmam que o discurso da desrazão, do descontrole e do medo que alguns familiares direcionam para as pessoas com transtorno mental colabora para a manutenção dos preconceitos e dificultam o trabalho comunitário. Para Lia, a proibição de cuidar do neto é uma experiência de menosprezo de suas capacidades pessoais, que fere sua autoestima. Para ela, essa restrição significa que sua imagem pessoal é construída a partir do estereótipo de que pessoas diagnosticadas com transtornos mentais, são perigosas e incapazes de realizar certas tarefas e assumir responsabilidades. A essa situação atribui uma tentativa de suicídio:

Ela é muito preconceituosa sobre esse assunto, ela fala [que] porque eu sou doida, que eu tomo remédio controlado e que eu não tenho direito de pegar meu neto pra tomar conta. Só me deixa ver ele com o pai dele por causa do meu problema. Me sinto assim infeliz, já tentei até me suicidar por causa disso. (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018)

Tadeu referiu que a mãe habitava com ele antes do seu adoecimento. Ao ser questionado sobre isto, entendemos que, na medida em que as crises foram aumentando e a mãe ficando mais idosa, os irmãos decidiram que Tadeu não tinha mais condição de cuidar da genitora, fato que ele interpreta como uma tentativa de dano intencional. Tadeu não se sente valorizado pela irmã, não é reconhecido como alguém capaz de cuidar da mãe.

Segundo Lia, familiares indicam que a mesma abandone o acompanhamento no CAPS; o pai insinua que o remédio a faz engordar. “Ele não sabe o tanto que ele me machuca com isso, aí esses dia eu falei com ele: painho você não sabe o quanto você me machuca com isso” (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018). Neste caso, Lia percebe o julgamento negativo do pai em função do tratamento que recebe, produzindo uma sensação de insegurança afetiva que a machuca emocionalmente.

Esta mesma participante relata desconforto na sua posição de mãe depois que adoeceu, decorrente do julgamento das pessoas sobre sua capacidade para exercer esse papel, pois: “antes de eu ficar doente eu me sentia muito bem, muito bem mesmo. Eu era feliz, eu passeava com meus filhos, depois que eu fiquei doente eu não me sinto mais bem com o ser mãe, não” (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018).

O cuidado dispensado a pessoas com transtorno mental se traduz em desafio para o núcleo familiar, pois configura uma gama de acontecimentos imprevistos e valorações negativas da loucura. Tal cenário acaba por demandar a necessidade de visualizar o ser humano em suas possibilidades, capacidades e potencialidades e não apenas nas limitações causadas pelos transtornos (Borba et al., 2011). Este exercício de compreensão demanda tempo e disponibilidade por parte dos familiares. Neste sentido, Lia afirma que o companheiro não tem tido paciência com a mesma, reclamando de seu nervosismo e impaciência.

Para Waidman (2004), conviver com pessoas com diagnóstico de um transtorno mental configura uma sobrecarga que pode ser representada por problemas no relacionamento familiar, estresse pelo convívio com a instabilidade do sujeito diagnosticado com o transtorno, situações de dependência, ou medo das recaídas e das crises, que podem causar tensão nas relações familiares. Os usuários dos serviços de saúde mental relatam a falta de compreensão da doença por parte de familiares e amigos, tornando-se urgente o acompanhamento da família com intuito de colaborar com o processo educativo-reflexivo por parte destes, para um melhor entendimento do transtorno mental e seus desdobramentos (Brasil, 2002).

As situações de menosprezo não se limitam à família, mas se dão também com vizinhos e amigos. Para Salles e Barros (2013), o emaranhado que compõe as relações sociais de egressos de hospitais psiquiátricos é formado pela família, amigos e colegas — e aí estão incluídos os vizinhos —, que possuem uma participação importante na cotidianidade da vida destes sujeitos. Os autores detectaram uma dificuldade de interação social dos usuários de saúde mental com esta rede, e a necessidade de intervenção dos serviços de saúde mental.

Caio relatou que, há algum tempo, quando habitava em outro município, ficava agitado, e as pessoas achavam que ele usava drogas. Ele explica que se sentia muito triste, pois quando estava em crise, “ficava nu, corria, rasgava roupa e perdia documento. O pessoal falava que eu tava fumando droga, eu ficava triste, não era droga que eu tava usando, era problema da mente mesmo” (Caio. Comunicação pessoal, 28 de junho de 2018).

Caio identifica que esses momentos de crise contribuem para reforçar um estereótipo negativo das pessoas diagnosticadas com transtornos mentais. Ele associa a loucura ao descontrole, por isso age como portador de um estigma que deve esconder, pois supõe que se alguém souber que ele faz acompanhamento no CAPS não vai querer relacionar-se com ele. Ele entende que quando as pessoas percebem que ele é um doente mental, se afastam evitando estabelecer vínculos afetivos ou de amizade.

Lia tem esta mesma percepção, pois diz ter vergonha e se sente apreensiva em relação às pessoas que evitam contato por ela ser doente. Em suas palavras, afirma ter “vergonha das pessoas ter preconceito, não querer mais falar comigo, que eu tenho uma vizinha lá que ela que não deixa o filho dela comigo porque eu faço tratamento aqui no CAPS” (Lia. Comunicação pessoal, 25 de junho de 2018).

Os relatos mostram que os/as participantes, enfrentam dificuldades em estabelecer vínculos afetivos e realizar certas trocas sociais na cotidianidade, devido ao estigma associado ao transtorno mental. As políticas públicas de saúde mental devem ter a função de potencializar o estabelecimento de relações sociais mediadas pelo respeito e reconhecimento mútuo.

Considerações Finais

Apoiados na teoria do reconhecimento intersubjetivo de Honneth (2010), em diálogo com as narrativas dos participantes sobre o cotidiano e as relações afetivas dos usuários do CAPS, podemos afirmar que as distintas experiências de menosprezo e reconhecimento descritas pelos participantes condicionam a construção das diversas formas de autoestima.

Apesar das experiências de menosprezo serem comuns na vida dos participantes, também são numerosos os relatos em que eles são reconhecidos positivamente no universo de relações que estabelecem, especialmente no âmbito familiar. Tal fato sugere uma contribuição do modelo de atenção á saúde mental que reconhece o valor das trocas sociais no processo de cuidado, porque a percepção de estima social e dedicação amorosa produz efeito positivo nos participantes, contribuindo para fortalecimento da autonomia e o desenvolvimento de laços sociais baseados na confiança e o respeito.

As mudanças na política de saúde mental no Brasil, impulsadas pela Reforma Psiquiátrica, estimularam o desenvolvimento de vínculos afetivos e a integração social das pessoas diagnosticadas com transtorno mental, ao contrário da internação e da exclusão praticadas amplamente, antes da Reforma. Neste sentido, os usuários valorizam as relações familiares, âmbito no qual alguns afirmam se sentirem respeitados e cuidados. Houve relatos também de usuários que cuidam de seus familiares como mãe idosa, filhos, esposa. Estas narrativas evidenciam que os papeis sociais que requerem assumir novas responsabilidades, contribuem para a construção de uma imagem positiva si. No entanto, os relatos mostram poucos lugares de socialização e construção de vínculos afetivos, sobretudo por fora do núcleo familiar, indicando a necessidade de ampliar a dimensão do trabalho em saúde mental a outros cenários de interação social.

Também houve relatos de experiências de menosprezo, relacionadas ao diagnóstico de transtorno mental, dentro da família. Alguns familiares constroem explicações mágico-religiosas do transtorno mental, associando a loucura a uma entidade maligna. Essa interpretação, elaborada a partir dos recursos imaginários e simbólicos que essas pessoas possuem, é interpretada como uma ofensa que fere a integridade pessoal e contribui para que a vergonha apareça associada aos diagnóstico de doença mental. Os participantes também relatam que à vezes são considerados incapazes de exercer certas funções ou pessoas indignas de credibilidade, o que afeta diretamente a autoconfiança e é um fator que não contribui com a construção da autonomia de uma percepção positiva de si.

Por esse motivo, a participação da família é central no cuidado adequado do usuário de saúde mental. Cabe aos serviços de saúde mental atenção a estes conflitos, prestar cuidados em saúde mental às famílias, disponibilizar informações com intuito de diminuir preconceitos e potencializar o reconhecimento dos usuários como pessoas e sujeitos nos distintos contextos de interação social.

Esta aceitação social é muito importante para os sujeitos e é determinante para a própria percepção de si. Ao contrário, atitudes que implicam discriminação, comentários ofensivos (como serem chamados de “doido”) geram feridas emocionais expressas na forma de tristeza e vergonha. Existe, nesses casos, a experiência de uma prática de menosprezo que afeta a dignidade pessoal.

Notadamente, destacamos a capacidade que os participantes demonstraram para a criação de estratégias na luta pelo reconhecimento intersubjetivo em distintos contextos sociais, especialmente na procura de estabelecer vínculos afetivos de distintos tipos. Um exemplo disso, é o uso das redes sociais na internet para formar laços de amizade e românticos, embora, ao mesmo tempo, essa estratégia revele uma tentativa de esconder a dimensão da sua subjetividade que pode ser rechaçada ou desacreditada. Neste caso, reconhecem a existência do preconceito e do estigma que a loucura carrega ainda na nossa sociedade, mas criam estratégias para driblar as práticas de exclusão.

Convém salientar que as políticas públicas de saúde mental e especificamente o CAPS devem intensificar as estratégias encaminhadas a fomentar a construção de vínculos afetivos dos sujeitos atendidos em distintos âmbitos, acompanhando a criação de laços sociais e reconhecendo a importância da dimensão emocional no tratamento, pois é esta a base que fundamenta qualquer forma de autoestima necessária para que as pessoas, como sujeitos de direitos, exerçam uma vida autônoma.

Finalmente, as estratégias de tratamento em saúde mental devem estar pautadas pelo respeito à dignidade das pessoas que são acompanhadas em tratamento. Isto inclui não só o fortalecimento de vínculos afetivos, mas o respeito pelos direitos como cidadãos e seu reconhecimento como pessoas dignas de estima social. Estes princípios devem ser observados ainda mais no Brasil contemporâneo, no qual as políticas governamentais em saúde mental retrocederam em anos recentes sob um governo de extrema direita, estimulando de novo as internações compulsórias em instituições psiquiátricas.

Entre os limites deste artigo, identificamos que existem experiências de reconhecimento e menosprezo associadas a marcadores de gênero e raça, que poderiam ser o foco de outros estudos.

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter qualquer conflito de interesses com qualquer instituição ou associação comercial de qualquer tipo.

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Notas do autor

Isis Lima da Silva

Psicóloga da Universidade Federal da Paraíba.  Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal doi Sul da Bahia. Atua no CAPS II, ambulatório de Psicologia e equipe de matriciamento em Saúde Mental na Atenção Básica no município de Porto Seguro. Email: isisls2001@gmail.com, https://orcid.org/0000-0002-9119-815X

Rafael Andrés Patiño

Professor do Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Sul Bahia (UFSB). Pós-doutor em Memória Social, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Psicólogo da Universidad de Antioquia, Colômbia e Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI/UFBA). Líder do Grupo de Pesquisa Estudos interdisciplinares sobre subjetividade, relações de poder e violência. Email: rafaelpatino@gfe.ufsb.edu.br, https://orcid.org/0000-0001-6492-8252


  1. 1 Agradecimentos ao apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da Chamada no 28/2018 – Universal.

  2. 2 Salário mínimo mensal, pago pelos Estado às pessoas com deficiência.