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Gonzaga, W., & Siqueira, F. da S (2024). O anseio por Deus e a confiança em seu auxílio: Sl 63(62) à luz da Análise Retórica Bíblica Semítica. Perseitas, 12, 140-169.
DOI: https://doi.org/10.21501/23461780.4765
O ANSEIO POR DEUS E A CONFIANÇA EM SEU AUXÍLIO: Sl 63(62) à luz da análise retórica bíblica semítica
The longing for God and the trust in his help: Ps 63(62) in the light of Semitic Biblical Rhetoric Analysis
El anhelo de Dios y la confianza en su ayuda: Sal 63(62) a la luz del Análisis retórico bíblico semítico
Artículo de reflexión derivado de investigación
DOI: https://doi.org/10.21501/23461780.4765
Recibido: agosto 3 de 2023. Aceptado: marzo 12 de 2024. Publicado: mayo 3 de 2024
Waldecir Gonzaga
Fabio da Silveira Siqueira
Resumo
O Sl 63(62) é de singular importância para a liturgia cristã. Evocando o desejo de Deus que faz com que o ser humano se levante antes da aurora para buscá-lo (v.2), este Salmo tornou-se a oração matutina por excelência, tanto para a liturgia bizantina, que o recita no órthros, quanto para a liturgia romana que, depois da reforma litúrgica do Vaticano II, o reservou para as Laudes do Domingo da I Semana do Saltério. O objetivo do presente artigo é analisar o Sl 63(62) pelo método da Análise Retórica Bíblica Semítica, com o intuito de estabelecer sua estrutura e de se perceber, assim, seus elementos teológicos mais relevantes. Para cumprir tal finalidade, o artigo divide-se em três partes: i) tradução do texto; ii) crítica da forma e iii) estabelecimento da estrutura segundo o método da Análise Retórica Bíblica Semítica. Por último, apresenta o comentário teológico. O artigo conduz o leitor à percepção de que o salmo possui uma estrutura tripartida. As duas primeiras partes se articulam no âmbito diurno (vv.2-6) e noturno (vv.7-9), onde o salmista manifesta seu desejo por Deus, recorda sua experiência passada e manifesta sua confiança no Senhor. A última parte do salmo é a imprecação, que evoca um misterioso “eles” (v.10a), conectando-se, assim, com o “tu” evocado no início da oração (v.2a). Ao “eles”, amorfo do inimigo, corresponde o manifesto “tu” divino, em quem o salmista confia, e cujo “amor” reconhece como sendo melhor que a própria existência (4a).
Palavras-chave
Análise Retórica Bíblica Semítica; Culto no Antigo Testamento; Desejo por Deus; Imprecação nos Salmos; Livro dos Salmos; Salmo 63; Templo.
Abstract
Ps 63(62) is of singular importance for the Christian liturgy. Evoking the desire for God that makes human beings rise before dawn to seek Him (v.2), this Psalm has become the morning prayer par excellence, both for the Byzantine liturgy, which recites it in the órthros, as for the Roman liturgy which, after the liturgical reform of Vatican II, reserved it for Laudes (Morning Prayer) on Sunday of the First Week of the Psalter. The purpose of this article is to analyze Ps 63(62) through the method of Semitic Biblical Rhetoric Analysis, with the aim of establishing its structure and thus realizing its most relevant theological elements. To fulfill this purpose, the article is divided into three parts: i) translation of the text; ii) criticism of the form and iii) establishment of the structure according to the method of the Semitic Biblical Rhetoric Analysis. Finally it ends with the theological commentary. The article leads the reader to the perception that the Psalm has a tripartite structure. The first two parts are articulated in the daytime (vv.2-6) and nighttime (vv.7-9) scope, where the psalmist expresses his desire for God, recalls his past experience and expresses his trust in the Lord. The last part of the Psalm is the imprecation, which evokes a mysterious “they” (v.10a), thus connecting with the “thou” evoked at the beginning of the sentence (v.2a). To the amorphous “they” of the enemy corresponds the manifest divine “thou”, in whom the psalmist trusts and whose “love” he recognizes as being better than existence itself (v.4a).
Keywords
Biblical Semitic; Book of Psalms; Curse in the Psalms; Psalm 63; Rhetoric Analysis Desire for God; Temple; Worship in the Old Testament.
Resumen
El Sal 63(62) es de singular importancia para la liturgia cristiana. Evocando el deseo de Dios que hace que el hombre se levante antes del alba para buscarlo (v.2), este salmo se ha convertido en la oración matutina por excelencia, tanto para la liturgia bizantina, que la recita en el órthros, como en cuanto a la liturgia romana que, tras la reforma litúrgica del Vaticano II, la reservó para las Laudes del domingo de la primera semana del salterio. El propósito de este artículo es analizar el Sal 63(62) a través del método de Análisis retórico bíblico semítico, con el objetivo de establecer su estructura y así dar cuenta de sus elementos teológicos más relevantes. Para cumplir con este propósito, el artículo se divide en tres partes: i) traducción del texto; ii) la crítica de la forma y iii) establecimiento de la estructura según el método del Análisis retórico bíblico semítico. Finalmente, cierra con el comentario teológico. El artículo lleva al lector a la percepción de que el salmo tiene una estructura tripartita. Las dos primeras partes se articulan en el ámbito diurno (vv.2-6) y nocturno (vv.7-9), donde el salmista expresa su deseo de Dios, recuerda su experiencia pasada y expresa su confianza en el Señor. La última parte del salmo es la imprecación, que evoca un misterioso “ellos” (v.10a), conectando así con el “tú” evocado al comienzo de la oración (v.2a). Al amorfo “ellos” del enemigo corresponde el manifiesto “tú” divino, en quien el salmista confía y cuyo “amor” reconoce como superior a la existencia misma (v.4a).
Palabras clave
Il libro de Salmos; Análisis retórico bíblico semítico; Deseo de Dios; Imprecación en los Salmos; Salmo 63; Templo.
Introdução
O Sl 63(62) ocupa um lugar importante na liturgia católica, conduzindo o louvor das manhãs festivas e solenes, em um ritmo de “louvor perene” (Pikaza, 2023, p. 319). Trata-se de um salmo festivo, sendo o primeiro a ser recitado na Liturgia das Horas nas Laudes do Domingo da primeira semana do Saltério, segundo o Rito Romano, e sendo recitado, também, nas festas e solenidades. É um dos muitos salmos que trazem לְדָוִד no título. Neste caso específico, a situação de perseguição que Davi experimentou da parte de Saul, quando andou errante pelo deserto de Judá (1Sm 22–24), aparece como a situação paradigmática de perseguição e desalento, que deve servir para tipificar aquilo o que o orante experimenta.
Localizado na segunda parte do Saltério (Janowski, 2021, p. 153) e podendo ser dividido em três partes, o salmo apresenta o orante como aquele que procura a Deus, dia (vv.2-6) e noite (vv.7-9). A maior parte do salmo gira em torno de dois pólos: o ambiente diurno e o noturno. No primeiro, o salmista manifesta, sobretudo, seu desejo de Deus e a sua aridez. Ele recorda a visão de Deus no santuário e a experiência do seu “amor” que é melhor do que a “vida” (v.4a), proclamando, em seguida, o seu louvor (Oden & Edwards, 2017, p. 104). No segundo, já no âmbito noturno, o salmista recorda-se mais uma vez de Deus, porém, agora, sobre o leito, e sente-se protegido lembrando as ações de Deus na sua história pessoal e na história do seu povo enquanto “medita” sobre o leito. O salmo culmina na imprecação final (vv.10-11) criando um interessante paradoxo entre o “tu” divino evocado no v.2 e o “eles” dos perseguidores, colocado em evidência no v.10.
O presente artigo oferece, em primeiro lugar, uma tradução do Sl 63(62), com notas explicativas, que analisam brevemente alguns aspectos semânticos e de crítica textual. Estes últimos a partir da Biblia Hebraica Stuttgartensia (Elliger; Rudolph, 1997). Em seguida, apresenta a estrutura comentada do salmo, à luz da Análise Retórica Bíblica Semítica (Meynet, R., 1992, pp. 159-249; Meynet, 1993, pp. 391-408; Meynet, 1996, pp. 403-436; Meynet, 2008, pp. 132-209; Meynet, 2020, pp. 431-468). Por fim, apresenta seu comentário teológico. O objetivo principal deste estudo é demonstrar como a Análise Retórica Bíblica Semítica pode servir para pôr em evidência os dois elementos fundamentais do salmo (Gonzaga, 2018, pp. 155-170): o anseio por Deus, a quem o salmista procura dia e noite, e a confiança em seu auxílio.
Segmentação, tradução e notas à tradução do Salmo 63(62)
Segmentação e tradução
Salmo de Davi. |
1a |
מִזְמ֥וֹר לְדָוִ֑ד |
Quando ele estava no deserto de Judá. |
1b |
בִּ֜הְיוֹת֗וֹ בְּמִדְבַּ֥ר יְהוּדָֽה׃ |
Ó Deus, meu Deus és tu, |
2a |
אֱלֹהִ֤ים׀ אֵלִ֥י אַתָּ֗ה |
madrugo por ti. |
2b |
אֲֽשַׁחֲ֫רֶ֥ךָּ |
Tem sede de ti a minha alma, |
2c |
צָמְאָ֬ה לְךָ֙׀ נַפְשִׁ֗י |
Anseia por ti a minha carne, |
2d |
כָּמַ֣הּ לְךָ֣ בְשָׂרִ֑י |
numa terra seca e sedenta, sem água. |
2e |
בְּאֶֽרֶץ־צִיָּ֖ה וְעָיֵ֣ף בְּלִי־מָֽיִם׃ |
Assim, no Santuário te contemplava, |
3a |
כֵּ֭ן בַּקֹּ֣דֶשׁ חֲזִיתִ֑יךָ |
para ver o teu poder e a tua glória. |
3b |
לִרְא֥וֹת עֻ֜זְּךָ֗ וּכְבוֹדֶֽךָ׃ |
Porque é melhor o teu amor do que a vida, |
4a |
כִּי־ט֣וֹב חַ֭סְדְּךָ מֵֽחַיִּ֗ים |
meus lábios te exaltarão. |
4b |
שְׂפָתַ֥י יְשַׁבְּחֽוּנְךָ׃ |
Assim, te bendirei em minha vida, |
5a |
כֵּ֣ן אֲבָרֶכְךָ֣ בְחַיָּ֑י |
em teu nome erguerei as minhas mãos. |
5b |
בְּ֜שִׁמְךָ אֶשָּׂ֥א כַפָּֽי׃ |
Como de gordura e banhase saciará a minha alma, |
6a |
כְּמ֤וֹ חֵ֣לֶב וָ֭דֶשֶׁן תִּשְׂבַּ֣ע נַפְשִׁ֑י |
e com lábios jubilosos (te) louvará minha boca. |
6b |
וְשִׂפְתֵ֥י רְ֜נָנ֗וֹת יְהַלֶּל־פִּֽי׃ |
Quando recordo de ti sobre o meu leito, |
7a |
אִם־זְכַרְתִּ֥יךָ עַל־יְצוּעָ֑י |
em vigílias noturnas medito em ti. |
7b |
בְּ֜אַשְׁמֻר֗וֹת אֶהְגֶּה־בָּֽךְ׃ |
Sim, foste um socorro para mim, |
8a |
כִּֽי־הָיִ֣יתָ עֶזְרָ֣תָה לִּ֑י |
e na sombra das tuas asas grito de júbilo. |
8b |
וּבְצֵ֖ל כְּנָפֶ֣יךָ אֲרַנֵּֽן׃ |
Apega-se a minha alma a ti; |
9a |
דָּבְקָ֣ה נַפְשִׁ֣י אַחֲרֶ֑יךָ |
a mim, sustenta-me a tua direita. |
9b |
בִּ֜֗י תָּמְכָ֥ה יְמִינֶֽךָ׃ |
Mas eles, para a destruição,buscam a minha alma, |
10a |
וְהֵ֗מָּה לְ֭שׁוֹאָה יְבַקְשׁ֣וּ נַפְשִׁ֑י |
irão às profundezas da terra. |
10b |
יָ֜בֹ֗אוּ בְּֽתַחְתִּיּ֥וֹת הָאָֽרֶץ׃ |
Serão entregues à espada, |
11a |
יַגִּירֻ֥הוּ עַל־יְדֵי־חָ֑רֶב |
presa dos chacais serão. |
11b |
מְנָ֖ת שֻׁעָלִ֣ים יִהְיֽוּ׃ |
Mas o rei se alegrará em Deus, |
12a |
וְהַמֶּלֶךְ֘ יִשְׂמַ֪ח בֵּאלֹ֫הִ֥ים |
será louvado todo o que jura por Ele, |
12b |
יִ֭תְהַלֵּל כָּל־הַנִּשְׁבָּ֣ע בּ֑וֹ |
Porque será tapada a bocados que falam mentira. |
12c |
כִּ֥י יִ֜סָּכֵ֗ר פִּ֣י דֽוֹבְרֵי־שָֽׁקֶר׃ |
Notas à tradução
v.1: A preposição לְ pode ter vários sentidos em hebraico. Ela pode servir para introduzir o complemento indireto de um verbo (Gn 3,12), mas pode, também, ser equivalente ao genitivo, indicando autoria ou posse (Alonso Schökel, 1997, p. 330). Tal sentido costuma ser aceito para traduzir a expressão מִזְמוֹר לְדָוִד, bastante recorrente no Saltério. Prieto Silva recorda que esse é um modo bastante comum de se entender a preposição, sobretudo quando ela está colocada depois de um substantivo indefinido (Prieto Silva, 2016, p. 70), como ocorre no Saltério e em outros lugares na Bíblia Hebraica (Sl 3,1; 4,1; 1Sm 16,18).
v.2: No v.2b duas questões devem ser esclarecidas: a primeira diz respeito ao sentido da raiz שׁחר e a segunda ao uso do Yiqtol. A raiz שׁחר, no piel, tem o sentido básico de “procurar” (Koehler & Baumgartner, 2001, v.1, p. 1465). Pode indicar o ato de levantar-se mais cedo para buscar algo de que se tem necessidade, uma vez que o substantivo “aurora, alvorada” (שַׁחַר), em hebraico, deriva da mesma raiz (Alonso Schökel, 1997, p. 666; Prieto Silva, 2016, p. 106). Com relação ao uso do Yiqtol, nota-se que o valor temporal das formas verbais hebraicas tem sido uma questão bastante discutida. O Sl 63(62) faz uso prevalente das formas Qatal e Yiqtol. As cadeias de Yiqtol, como as encontradas nos vv.4b-6b e 10b-12c podem ter sentido futuro (Del Barco, 2003, pp. 168-169). Contudo, há quem classifique o Yiqtol como uma forma “omnitemporal”, quando utilizado na poesia bíblica (Niccacci, 2002, pp. 174-175). Nesse caso, os pares Qatal/Yiqtol podem ter o mesmo valor temporal – Os 5,5; Sl 38,12; Sl 93,3 – ou o Yiqtol pode ser utilizado para indicar uma ação habitual (Ml 1,1). Este último parece ser o caso do v.2b, onde o Yiqtol relaciona-se com a oração nominal do v.2a. No v.7, por sua vez, aparece o par Qatal/Yiqtol.
O termo נֶפֶשׁ, presente no v.2c, conecta-se, em primeiro lugar, à esfera da respiração, podendo indicar a garganta, o fôlego ou o alento. Pode indicar, também, o “ser”, o “indivíduo”. A tradução por “alma” no v.2c justifica-se pelo paralelismo com o termo “carne” (בָּשָׂר) do v.2d que designa, normalmente, o aspecto exterior, físico e, portanto, sujeito à caducidade, do ser humano. Para manter uma justa equivalência no texto, o que parece útil ao método da Análise Retórica Semítica Bíblica, manteve-se a tradução por “alma” nas outras ocorrências do termo נֶפֶשׁ: (vv.6.9.10). Alguns autores preferem a tradução por “ser” ou por “vida”, indicando a totalidade da pessoa (Prieto Silva, 2016, p. 18; Monti, 2018, p. 681).
A raiz כמהּ do v.2d é um hápax legómenon. Os dicionários sugerem que seja traduzida por “desfalecer” ou “ansiar por” (Koehler & Baumgartner, 2001, v.1, p. 480). Este último sentido parece se encaixar bem no contexto do versículo que fala do desejo de Deus por meio da metáfora da sede (Prieto Silva, 2016, p. 22-23; Mays, 2010, p. 245).
O termo עָיֵף do v.2e, referido a uma pessoa, costuma significar “exausto, cansado, exaurido”: Gn 25,29.30; Dt 25,18; Jz 8,4.5; 2Sm 16,14. Este é o sentido predominante no AT. Contudo, referido à terra, o adjetivo aparece no Sl 143,6 e em Is 32,2, podendo ser traduzido como “árido, sedento, desolado”. O termo “sedento” foi escolhido para reforçar a ideia de sede presente no v.2c. Por fim, ainda no v.2e, ocorre o termo מָיִם que, embora esteja no plural, pode ser traduzido pelo singular. O mesmo ocorre com alguns outros termos ao longo do salmo, como o termo חַיִּים, dos versículos vv.4a e 5a que, embora tenha uma forma plural, tem significado singular: “vida”, “existência”, “a duração da vida” (Alonso Schökel, 1997, pp. 215-216).
v.4: O v.4a inicia-se com a partícula כִּי, que pode conferir ênfase, sendo traduzida por vezes como “sim!” ou, pode introduzir uma justificativa, como parece ser o caso do versículo em questão. Pode tratar-se de um casus pendens, onde o elemento que cria expectativa vem antes: Porque teu amor é melhor que a vida, meus lábios te louvarão. Seria a inversão da ordem direta: Meus lábios te louvarão porque teu amor é melhor que a vida. No v.8a, a mesma partícula foi traduzida com sentido enfático, uma vez que o uso da conjunção וְ no v.8b parece corroborar a ideia de que não se trataria de casus pendens. Ainda no v.4a, preferiu-se traduzir o termo חֶסֶד por “amor”, embora a LXX (Rahlfs & Hanhart, 2006) o traduza por ἔλεος e a Vulgata (Weber & Gryson, 2007) por misericordia. Considerou-se o que afirma Stoebe a respeito do termo חֶסֶד. Ele considera que se trata de um termo difícil de ser traduzido em toda a sua gama de significados por um termo único nas línguas modernas. Contudo, tendo em vista que o comportamento indicado por tal termo não costuma indicar o evidente e obrigatório, as ideias de “amabilidade” e “bondade” se aproximam bastante do seu sentido (Stoebe, 1978, pp. 846-847). No v.4b optou-se por traduzir a raiz שׁבח como “exaltar” a fim de se evitar uma confusão com as raízes ברך do v.5a, traduzida como “bendizer”, e הלל do v.6b e v.12b, traduzida como “louvar”.
v.9: A “direita de Deus” é o sujeito da oração. A tradução “Sustenta-me a tua direita” também se encaixa bem, mas não dá destaque para expressão בִּי do v.9b. Deve-se observar que o autor preferiu fazer diferente do v.9a, não colocando a pessoa que recebe a ação na forma de um sufixo anexado ao verbo, mas sim, com uma preposição e o sufixo. Tal forma de proceder parece ter a finalidade de dar ênfase. Como a exegese pretendida neste artigo utiliza como método a Análise Retórica Bíblica Semítica, procurou-se deixar tais ênfases mais evidentes na tradução. Contudo, para adequar a tradução à sintaxe da língua de destino, foi necessário repetir o objeto na tradução: “a mim, sustenta[-me] a tua direita”.
v.10: Manteve-se a tradução do pronome pessoal הֵמָּה (eles) com o intuito de se deixar explícita a contraposição o pronome אַתָּה (tu) do v.2a: de um lado está Elohîm, a quem o salmista recorre pedindo auxílio; de outro, estão os seus algozes, sobre quem lança a imprecação. A LXX parece ter confundido, no v.10a, a expressão לְשׁוֹאָה (ruína) com a expressão לַשָּׁוְא (vazio), por isso a tradução “Quanto àqueles que ‘sem razão’ (μάτην) procuram a minha vida”. Como o Texto Massorético é compreensível, não há motivos para discordar dele em favor da LXX. Com relação às formas verbais empregadas nos vv.10-12, pode-se destacar que, no v.10a, o Yiqtol parece indicar uma ação contínua: existe uma ameaça constante para o orante. Por isso a tradução pelo presente. Todavia, dos vv.10b-11b ele “descreve” o que irá acontecer aos seus perseguidores, o que fica melhor explicitado com uma formulação futura. A súplica pelo rei do v.12 se encaixa na forma final do salmo que é apresentado como uma oração de Davi em tempo de perseguição. O “perseguido” e “caluniado” é o rei, por isso a continuação em Yiqtol, servindo como contraponto ao que acontece aos inimigos: enquanto esses descerão às profundezas da terra, o rei se alegrará em Deus (Pikaza, 2023, p. 321).
v.12: A raiz הלל aparece no v.12b e no v.6b. No v.6b o sentido é de “louvar” e está em estreito paralelismo com as formas verbais presentes no v.4b e v.5a. O hitpael do v.12b tem, normalmente, o sentido de “gloriar-se, orgulhar-se, jactar-se” (1Cr 16,10; Sl 34,3; 52,3; 105,3; 106,5), normalmente com a preposição בְּ introduzindo aquilo que leva o sujeito a orgulhar-se. Neste versículo, a preposição בְּ não se conecta com raiz הלל, mas, sim, com o particípio da raiz שׁבע, “os que juram por Ele”, por Deus. Note-se o paralelismo com o v.12a, onde a mesma preposição conecta-se com o termo אֱלֹהִים, ligado à raiz do verbo שָׂמַח. O sentido passivo de “ser louvado” ocorre, por sua vez, em Pr 31,30, no elogio da mulher forte. A decisão pela tradução por “ser louvado” deu-se para manter o paralelismo com o v.6b, e parece ser possível em virtude da ausência da preposição בְּ conectada ao verbo, introduzindo aquilo que leva o sujeito a orgulhar-se.
Estrutura segundo a ARBS
O v.1 é o título do salmo, que tem por finalidade encaixá-lo numa situação paradigmática ideal. Embora não haja um acordo acerca do seu gênero literário, tendo em vista que nele confluem muitos elementos, como a lamentação, a imprecação, a ação de graças, hino ou cântico de confiança (Aparicio, 2006, p. 194), a súplica e outros, há quem o considere como uma lamentação individual tendo como Sitz im Leben uma situação de perseguição (Ravasi, 1985, p. 269; Prieto Silva, 2016, p. 52). O título do salmo identifica essa situação paradigmática com uma situação concreta: a perseguição que Davi sofreu da parte de Saul e o período em que teve de andar errante pela região desértica de Judá (1Sm 22–24) (Mays, 2010, p. 246). Tal identificação torna-se ainda mais clara à luz do v.12, que conclui o salmo com uma súplica pelo rei. Além disso, a estrutura do Sl 63(62) é demarcada fundamentalmente por duas figuras de linguagem muito fortes na literatura bíblica, formando um binarismo: o paralelismo e o quiasmo, como se verá a seguir, ao longo deste tópico.
O corpo do salmo pode ser dividido em três partes:
•vv.2-6: âmbito diurno (“madrugo por Ti” – v.2b);
•vv.7-9: âmbito noturno (“recordo de ti sobre o leito” – v.7a);
•vv.10-11: imprecação
A primeira parte do salmo começa com uma invocação a Deus e com a manifestação do desejo do orante de estar na sua presença. O âmbito diurno é indicado pelo uso da raiz שׁחר, cujo sentido já foi apresentado acima nas “notas à tradução”. Nesta primeira parte do corpo do texto, três momentos podem ser individuados: i) v.2 – invocação e desejo de Deus; ii) v.3 – visão de Deus no Santuário e iii) vv.4-6 – louvor a Deus por seu amor (Aparicio, 2006, p. 195). O v.2 é o maior desta seção, contando com cinco segmentos. Depois de invocar a Deus no v.2a e de manifestar a intensidade do seu desejo com o “madrugar por Deus” no v.2b, o salmista segue dando maior expressão à sua sede num paralelismo que coloca em cena dois aspectos do ser humano: נֶפֶשׁ e בָּשָׂר:
v.2c: Tem sede |
DE TI |
minha alma |
v.2d: Anseia |
POR TI |
minha carne |
O paralelismo é concluído pelo v.2e, onde três adjetivos reforçam a ideia de “sede”, de “desejo”: terra “seca”, “sedenta” e “sem água”. O v.3 traz duas raízes relacionadas ao âmbito da visão: חזה e ראה. O único verbo finito da oração é o verbo חָזָה, que é utilizado no Qatal, fazendo referência a uma situação que pode ser entendida como uma ação continuada no passado: te “contemplava”. “Glória” e “poder” são os adjetivos com os quais o salmista classifica a presença de Deus no santuário, os mesmos que ocorrem em 1Cr 16,28 referindo-se, também, à presença de Deus em seu Templo. Os vv.4-6 concluem a primeira parte do corpo do salmo trazendo o louvor a Deus por seu amor. Quatro verbos/expressões indicam a temática desses versículos: “exaltar” – v.4b (שָׁבַח); “bendizer” – v.5a (בָּרַךְ); “erguer as mãos” e v.5b (נָשָׂא + כַּף); “louvar” – v.6b (הָלַל). O v.4 pode ser compreendido como um casus pendens, onde 4a traz o motivo pelo qual os lábios do salmista irão exaltar a Deus (v.4b). Tanto o v.3 quanto o conjunto dos vv.5-6 são introduzidos pela partícula כֵּן, traduzida como “assim”. Ela parece servir, no contexto do salmo, para retomar o que foi afirmado antes: o salmista contemplava a Deus no santuário (v.3), tomado de intenso desejo (v.2); ele vai bendizer a Deus e elevar suas mãos (v.5), porque reconheceu que o amor de Deus é melhor que a própria vida (v.4).
As quatro ações descritas nos vv.5-6 apresentam um paralelismo entre os termos “vida” (v.5a) e “alma/ser” (v.6a) de um lado, e os termos “mãos” (v.5b) e “boca” (v.6b), de outro:
v.5a: Assim |
||
TE |
bendirei |
em minha vida |
v.5b: EM TEU NOME |
erguerei |
as minhas mãos |
v.6a: Como de gordura e banha |
será saciada |
a minha alma |
v.6b: Com lábios jubilosos |
te louvará |
minha boca |
O início da segunda parte do salmo é indicado, em primeiro lugar, pela mudança temporal: com a menção do “leito” (v.7a) e das “vigílias noturnas” (v.7b), o salmista se transporta para o âmbito noturno. Além disso, a temática dos vv.7-9 apresenta uma nova perspectiva: enquanto os vv.2-6 tinham seu foco no louvor a Deus, os vv.7-9, ainda que não excluam essa temática, tendo em vista o uso da raiz “gritar de júbilo” (רנן), no v.8b parecem girar em torno do reconhecimento das ações de Deus e da confiança nele, que protege aquele que está em grande angústia. Notam-se os vocabulários específicos desses versículos: “socorro” – 8a (עֶזְרָה); “sombra das tuas asas” – v.8b (צֵל כְּנָפֶיךָ); “sustentar” – 9b (תָּמַךְ).
Também nesta segunda parte do corpo do salmo três momentos podem ser individuados: i) v.7 – a recordação de Deus durante a noite; ii) v.8 – o reconhecimento de suas ações e iii) v.9 – manifestação de confiança. O v.7 faz a transição para o âmbito noturno e traz dois verbos que remetem à interioridade do salmista: “recordar” (זָכַר) e “meditar” (הָגָה). O objeto, expresso por sufixos, é sempre Deus.
No centro desta segunda parte do corpo do salmo está o reconhecimento das ações de Deus (v.8). A frase é introduzida pela partícula כִּי, tomada aqui em sentido enfático. O verbo הָיָה, no Qatal, introduz a sentença logo depois da partícula inicial, marcando-a como uma Oração Verbal. No centro da sentença, está o termo “socorro/auxílio” unido a um sufixo direcional. Tal forma do termo é pouco frequente no Saltério, ocorrendo também nos Sl 44,27 e 94,17, onde o complemento vem, como aqui, introduzido pela preposição לְ com sufixo. A experiência de Deus como “socorro/auxílio”, corroborada pela proteção encontrada “na sombra” das suas asas, tem, como fruto, o louvor, unindo essa segunda parte do salmo à primeira, mas utilizando outro verbo que ainda tinha ocorrido na primeira parte do texto: “gritar de júbilo” (רנן). Aqui ocorre um quiasmo no salmo: as expressões “socorro” e “sombra de tuas asas” correspondem-se mutuamente, bem como os verbos “ser” e “exultar”:
v.8a: SIM |
(TU) foste |
(A) |
um socorro para MIM |
(B) |
v.8b: |
E na sombra de TUAS asas |
(B’) |
exulto |
(A’) |
A manifestação da confiança em Deus vem expressa no v.9, também sob a forma de um quiasmo:
v.9a |
Apega-se |
(A) |
a minha alma |
(B) |
A TI |
v.9b |
a mim |
(B’) |
sustenta |
(A’) |
TUA DIREITA |
A terceira e última parte do corpo do salmo é a imprecação, contida nos vv.10-11. Sua conexão com a primeira parte é expressa pelo uso enfático do pronome pessoal na terceira pessoa plural, הֵמָּה, no v.10a. Nota-se que, no v.2a, no início do corpo do salmo, é utilizado, também, de forma enfática, o pronome אַתָּה em relação a Deus, a quem o salmista invoca e louva (vv.2-6) e cuja proteção recorda (vv.7-9). No decorrer de todo o salmo, o estilo é marcado pelo uso de sufixos para indicar a pessoa a quem ou de quem se fala. Somente no início e na última parte é que aparecem os pronomes pessoais que demonstram a coesão do salmo e, ao mesmo tempo, marcam uma contraposição: de um lado Elohîm, o “tu” invocado pelo salmista; e, de outro, um “eles” genérico–os que procuram destruir a vida do salmista. Depois da introdução no v.10a, a imprecação segue enumerando três ações que manifestarão o juízo divino sobre aqueles que perseguem o orante (Aparicio, 2006, p. 199). Nota-se o esquema “Verbo + Complemento” dos vv.10b e 11a que é invertido no v.11b:
v.10a: Quanto aqueles que |
para a ruína procuram |
a minha alma |
||
v.10b: Irão |
(A) |
(em) |
as profundezas da terra |
(B) |
v.11a: Serão entregues |
(A) |
(sobre) |
mãos de espada |
(B) |
v.11b: Porção dos chacais |
(B) |
serão |
(A) |
O v.12 é a conclusão, que segue o mesmo esquema ternário que perpassou as duas primeiras partes do salmo, apresentando uma síntese de tudo o que veio antes: v.12a – intercessão pelo rei, que se conecta com o título do salmo; v.12b – o destino dos justos (retoma os vv.2-9); v.12c – o destino dos perseguidores (retoma os vv.10-11). A colocação, no v.12a, da expressão בֵּאלֹהִים no final da frase, em conjunto com a colocação, no v.12c, da expressão דֽוֹבְרֵי־שָׁקֶר, também no final da frase, retoma o esquema macroestrutural do salmo, que gira em torno do “tu”, do v.2a, referido a Deus, e do “eles”, do v.10a, referido aos que buscam destruir a vida do orante que está por detrás do salmo.
A estrutura poderia ser esquematizada da seguinte forma:
v.1 – Título |
||||
Primeira parte – vv.2-6: âmbito diurno |
||||
Três momentos: |
||||
v.2: Invocação e desejo de Deus |
||||
v.3: Visão de Deus no Santuário |
||||
vv.4-6: Louvor a Deus por seu amor |
||||
v.2: Invocação e desejo de Deus |
||||
v.2a: Ó Deus, Meu Deus |
ÉS TU |
Invocação a Deus |
||
v.2b: Madrugo |
POR TI |
|||
v.2c: Tem sede |
DE TI |
minha alma |
Desejo de Deus |
|
v.2d: Anseia |
POR TI |
minha carne |
||
v.2e: Em terra SECA e SEDENTA, SEM ÁGUA |
||||
v.3: A “visão” de Deus no Santuário |
||||
v.3a: ASSIM |
no Santuário |
contemplei (A) |
A TI (B) |
|
para ver (A) |
TEU poder e TUA glória (B’) |
|||
vv.5-6: O louvor a Deus por seu amor |
||||
v.4a: Porque |
é MELHOR |
teu AMOR |
que a VIDA |
|
v.4b: Meus lábios |
TE |
louvarão |
||
v.5a: ASSIM |
TE |
bendirei |
em minha vida (A) |
|
v.5b: |
EM TEU NOME |
erguerei |
as minhas mãos (B) |
|
v.6a: |
Como de gordura e banha |
será saciada |
a minha alma (A’) |
|
v.6b: |
Com lábios jubilosos |
te louvará |
minha boca (B’) |
|
Segunda parte – vv.7-9: âmbito noturno |
||||
Três momentos: |
||||
v.7: Recordação de DEUS durante a NOITE |
||||
v.8: Reconhecimento das ações de DEUS |
||||
v.9: Confiança em DEUS |
||||
v.7: Recordação de DEUS durante a NOITE |
||||
v.7a: Quando |
recordo (A) |
DE TI (B) |
sobre meu leito (C) |
|
v.7b: Em vigílias noturnas (C) |
medito (A) |
EM TI (B) |
||
v.8: Reconhecimento das ações de Deus |
||||
v.8a: SIM |
(TU) foste (A) |
um socorro (B) |
para mim |
|
v.8b: |
E na sombra de TUAS asas (B’) |
exulto (A’) |
||
v.9: Confiança em Deus |
||||
v.9a: |
Apega-se (A) |
a minha alma (B) |
A TI |
|
v.9b: |
a mim (B’) |
sustenta (A’) |
TUA DIREITA |
|
Terceira parte – vv.10-11: imprecação |
||||
[Introdução] + Três momentos: |
||||
v.10b: Profundezas da terra |
||||
v.11a: Espada |
||||
v.11b: Presa de chacais |
||||
v.10a [introdução]: Mas eles, para a destruição, buscam a minha alma |
||||
v.10b: Irão (A) |
(em) |
às profundezas da terra (B) |
||
v.11a: Serão entregues (A) |
(sobre) |
mãos de espada (B) |
||
v.11b: Porção dos chacais (B) |
serão (A) |
|||
v.12 – Conclusão |
||||
Três momentos: |
||||
v.12a: Intercessão pelo rei (retoma o v.1) |
||||
v.12b: Destino do justo (retoma os vv.2-9) |
||||
v.12c: Destino dos perseguidores (retoma os vv.10-11) |
||||
v.12a: |
Mas o Rei (A) |
se alegrará (B) |
EM DEUS (C) |
|
v.12b: |
Será louvado (B) |
todo o que jura (A) |
por ELE (C) |
|
v.12c: |
Será tapada (B) |
a boca (A) |
dos que falam mentira (C) |
O sentido teológico do Salmo 63(62)
O Sl 63(62), fortemente estruturado pelo paralelismo e pelo quiasmo, como visto no tópico anterior, ajudando e muito em sua compreensão teológica à luz da ARBS, é emoldurado pela referência real: inicia-se com um título que faz referência a Davi (v.1) e conclui-se com uma súplica pelo rei (v.12). Particularmente esta última, faz com que alguns autores pensem numa datação pré-exílica para sua composição (Kraus, 1993, p. 35). A evocação da perseguição de Davi por Saul no deserto de Judá (1Sm 22–24), no título do salmo, dá o sentido da oração que vem a seguir: na perseguição e na angústia deve-se confiar em Deus, pois ele mesmo há de fazer justiça para o oprimido. Em 1Sm 24,18, Saul reconhece que Davi é “mais justo do que ele” por ter lhe poupado a vida. Assim também quem reza esse salmo encontra em suas três partes uma descrição orante de como deve proceder: ainda que esteja numa terra seca (v.2e), deve confiar naquele cujo amor é melhor que a vida (v.4a), pois Ele é socorro para quem o invoca (v.8a). Ele mesmo fará voltar sobre os perseguidores do justo o mal que lhe fazem (v.10-11).
O âmbito diurno: o anseio por Deus (vv.2-6)
A primeira parte do salmo começa com uma súplica, acompanhada de uma confissão de fé (v.2a). Somente sete salmos começam diretamente com a súplica “Ó Deus”:(אֱלֹהִים) 44,2; 54,3; 60,3; 63,2; 70,2; 79,1; 83,2. Enquanto a súplica, com o uso do termo אֱלֹהִים, parece sublinhar o caráter transcendente de Deus, a expressão “meu Deus”, por sua vez, designa a proximidade entre Deus e o orante (Ringgren, 1974, pp. 279-284). A súplica inicial demonstra-se bem conectada com o desenvolvimento do salmo, uma vez que a transcendência divina também é evocada pelo termo “glória” (3b), enquanto a proximidade com Deus é afirmada no decorrer de todo o salmo, mais particularmente em 8a, com a imagem de Deus como “socorro”.
Dois dos três personagens da oração são postos em cena: Deus e o orante. O “tu” do v.2a, assim como a sucessão dos sufixos de 2ms e 1cs na primeira (vv.2-6) e segunda partes do salmo (vv.7-9) recordam o duplo movimento que se dá nas duas primeiras partes do texto: o salmista se lança para Deus (v.2b), porque reconhece que Deus se lança em direção a ele, uma vez que ele é o depositário de seus benefícios (v.8a). Esse é o movimento próprio da oração: subida (anábase) do homem em direção a Deus pela súplica; descida (catábase) de Deus em direção ao homem por meio da sua bênção e ação salvífica (Ex 3,8).
Nov.2b o salmista expressa seu desejo por Deus por meio da imagem do “madrugar”. A raiz שׁחר significa propriamente “buscar”, sendo utilizada, algumas vezes, em paralelo com a raiz בּקשׁ (Os.5,15). Tal raiz pode significar uma busca intensa, com solicitude, indicando, inclusive, alguém que madruga para buscar algo de que tem necessidade, como parece ser o caso do versículo em questão (Meynet, 2018, p. 259; Monti, 2018, p. 685). A intensidade da busca por Deus é corroborada pelo uso dos verbos “ter sede” (v.2c) e “ansiar” (v.2d), postos em relação com os termos aqui traduzidos como “alma” (נֶפֶשׁ) e “carne” (בָּשָׂר), que indicam o homem na sua totalidade: seu aspecto físico e sua dimensão interior. É interessante notar que o elemento mais interno do homem, sua נֶפֶשׁ, é indicado em primeiro lugar. Embora o termo possa também aludir ao ser humano em si, sem separar nele dois aspectos (Gn 2,7 – “ser vivente”), a colocação junto com בָּשָׂר reforça a ideia, também representada por esse termo, de uma dimensão interior do ser humano, onde o desejo por Deus tem seu início (Westermann, 1985, pp. 110-111; Alonso Schökel & Carniti, 1996, p. 809). É a partir de dentro do ser humano que tal desejo se manifesta, na forma de “sede”, metáfora do “anseio”.
A “sede” do v.2c vem intensificada pelas expressões de 2e, que se conectam ao título: quem está no deserto (v.1b), tem sede porque está numa terra “seca”, “sedenta”, “árida” (Corbajosa, 2018, p. 454). A colocação de três termos evoca a ideia de totalidade, indicando que o orante se reconhece extremamente necessitado e, por isso, totalmente desejoso de Deus. Também a expressão בְּאֶרֶץ reforça a conexão com o título do salmo. Somente alguns poucos manuscritos hebraicos e a versão de Símaco, substituem a preposição בְּ pela preposição כְּ, transformando a metáfora em comparação. O salmista aplica a metáfora do deserto à sua situação, por isso ele afirma “ter sede” e “ansiar” por Deus “numa terra seca e sedenta, sem água”. Do ponto de vista do estilo, é interessante notar como os binômios são utilizados no v.2: “alma” e “carne”; “seca” e “sedenta”. No v.2e, um terceiro termo classifica o substantivo “terra”, mas esse é colocado fora do binômio, e introduzido por um advérbio.
No v.3, o salmista recorda-se da experiência de encontrar a Deus no Templo (Flecha Andrés, 2021, p. 145). O uso da raiz חזה no Qatal parece indicar uma ação contínua vivida pelo salmista no passado: a contemplação de Deus no lugar santo, seu santuário (קֹדֶשׁ). No v.3b, a presença de Deus é designada pelo binômio “poder” e “glória”. O uso do termo “glória” recorda algumas imagens importantes da tradição veterotestamentária, como a experiência do Êxodo (Ex 40,35) e a consagração do primeiro Templo (1Rs 8,11). Tal modo de descrever a experiência da presença de Deus no Santuário evoca, também, a vocação de Isaías (Is 6) uma vez que o profeta vê a fumaça que enche o lugar santo, assim como a Glória de YHWH se manifestava na nuvem (Weiser, 1984, p. 503; Harman, 2011, p. 244). A recordação do encontro com Deus traz alento e faz o louvor brotar dos lábios do salmista (vv.4-6).
Nos vv.4-6 o salmista louva a Deus por seu “amor” (חֶסֶד) e reconhece que isso é melhor que a “vida” (חַיִּים). A conjunção כִּי, que abre o v.4, pode ter valor enfático, explicativo ou causativo, dentre outros. Prieto e outros autores recentes afirmam que, no Sl 63,4, tal conjunção tem tanto valor tanto enfático, quanto causal, dando destaque para o חֶסֶד divino, e conectando-se com o tema da presença de Deus no Templo (v.3), fruto do Seu amor e do Seu desejo de comunhão com os homens, e abrindo para os versículos seguintes, justificando, por assim dizer, o louvor que é fruto da experiência do amor de Deus (Prieto Silva, 2016, p. 156; Clifford, 2021, p. 89; Gerstenberger, 2001, p. 14). O adjetivo “bom/melhor” é colocado logo depois da conjunção כִּי, e seu uso recorda o primeiro relato da criação (Gn 1,1–2,3), onde o termo é utilizado com bastante frequência. No fim do relato, Deus viu toda a obra da criação que fizera e constatou que tudo era “muito bom” (טוֹב מְאֹד: Gn 1,31). O salmista, ainda que esteja em grande angústia, se recorda da presença de Deus no Templo e isso desperta nele a aclamação: “teu amor” é melhor que a vida. De que adiantaria toda a obra da criação e a própria vida humana, ainda que reconhecida pelo próprio Deus como “muito boa”, se não fosse o amor de Deus? Na fonte da própria criação está o amor sublime de Deus por sua criatura. E a vida não vale a pena sem uma verdadeira comunhão com Ele, no amor (Kraus, 1993, p. 36).
Nos vv.4b-6b, o louvor a Deus é descrito por quatro verbos no Yiqtol, que apresentam três ações – “exaltar” (v.4b); “bendizer” (5a); “louvar” (v.6b) e um gesto de ação de graças – “erguer as mãos” (v.5b) (Corbajosa, 2018, p. 455). À plenitude da aridez, descrita por três vocábulos no v.2e, corresponde a plenitude do louvor, evocada pelas três ações descritas acima. O gesto de “erguer” as mãos, descrito no v.5b é um gesto conhecido no Antigo Oriente e no próprio Antigo Testamento como um gesto de oração e de súplica. Algumas vezes, indica-se o lugar para onde o orante vai estender ou levantar suas mãos (Sl 88,10; Sl 134,2). A eficácia do gesto é garantida pela menção do “nome” de Deus, que evoca sua própria presença (Kraus, 1993, p. 37).
Os vv.5-6, seguindo o esquema rítmico do salmo, coloca em evidência três binômios. Dois indicam o ser do orante: “vida” (v.5a) e “alma” (6a); “mãos” (v.5b) e “boca” (v.6b). No v.6a, um terceiro indica a saciedade que o orante experimentará como fruto do louvor: “gordura” e “banha”. Tal binômio só é utilizado neste salmo. Os dois termos são sinônimos, sendo חֵלֶב o termo mais recorrente na Bíblia Hebraica. חֵלֶבé um termo significativo para o ambiente cultual, significando a “gordura” que pertencia a Deus, como a parte mais nobre do sacrifício (Lv 3,9). Dt 32,14 recorda que Deus alimentou seu povo, no deserto, com a gordura. O binômio parece significar uma refeição abundante, como metáfora da situação de bem-estar que o salmista espera gozar diante de Deus (Oden & Edwards, 2017, p. 105).
O uso do termo חֵלֶב tanto em Dt 32,14, para referir-se às tradições exodais, quanto no vocabulário cultual, pode ajudar a compreender, de modo mais profundo, o alcance teológico da afirmação do v.6a. A preposição כְּמוֹ, que introduz o versículo, indica que se trata de uma comparação, ou seja, na sua situação de deserto, o salmista espera que se possa repetir nele a experiência do povo de Israel: ele espera ser, também, alimentado por Deus com a “gordura”, com o que há de melhor, como o povo foi outrora assim nutrido no deserto. Deve-se recordar que, no deserto, o povo foi alimentado não só com maná, mas também com a Lei (Dt 8,3). Esse foi, sem dúvida, o “alimento melhor”: a palavra saída da boca de Deus. A presença do termo חֵלֶב no vocabulário cultual, por sua vez, indicando a parte do sacrifício que pertence exclusivamente a Deus, poderia indicar que o salmista espera receber um alimento que está intimamente ligado à esfera divina e que, por isso, o saciará plenamente. Tal “alimento” parece ser, sobretudo, a fruição da presença do próprio Deus, que ocupa a maior parte do texto do salmo, sendo a libertação dos seus inimigos um ganho secundário (Weiser, 1984, p. 503). Nota-se que o acento está no termo נֶפֶשׁ que, como já dito antes, pode indicar tanto o “ser” quando o aspecto mais interno do homem, onde nascem os “desejos” e, sobretudo, o “desejo por Deus” (Is 26,8-9).
O âmbito noturno: a confiança no auxílio divino (vv.7-9)
A segunda parte do salmo, com a menção do termo “leito” (v.7a) e a recordação das “vigílias noturnas” (v.7b), apresenta o orante no âmbito noturno. É vital para o orante a comunhão com Deus. Só através dessa comunhão, dessa experiência singular do “amor” que é melhor que a “vida” (v.4a) é que o orante pode sentir-se saciado. Tal desejo o acompanha pela noite, de tal modo que, mesmo sobre o leito, não pode jamais “esquecer-se” de Deus. Aliás, é justamente aí que ele o “recorda” (זכר – v.7a) e desperta para as vigílias. O “recordar-se de Deus”, segundo Prieto, é mais do que meramente trazer à memória algo sobre Ele; trata-se de uma “confissão de fé”. “Esta recordação constitui um trazer constantemente à memória as obras salvíficas do Senhor, que, por sua vez, é um Deus que se recorda do seu povo e lhe doa a salvação” (Prieto Silva, 2016, pp. 199-200).
O termo אַשְׁמוּרָה deriva da raiz שׁמר (guardar), indicando a “guarda noturna” e podendo ser utilizado em contexto militar (García López, 2006, pp. 286-287). A vigília da noite estava dividida em três partes: i) a primeira vigília (Lm 2,19 –לְרֹאשׁ אַשְׁמֻרוֹת ); ii) a vigília intermediária (Jz 7,19 –הָאַשְׁמֹרֶת הַתִּיכוֹנָה) e iii) a vigília que antecipava a manhã (Ex 14,24 –בְּאַשְׁמֹרֶת הַבֹּקֶר ). אַשְׁמוּרָה e que ocorre apenas três vezes no saltério (Sl 63,7; 90,4; 119,148), indicando o âmbito noturno como o espaço privilegiado da oração.
A raiz הגה utilizada no v.7b e traduzida aqui como “meditar” pode significar, também, “sussurrar”, “recitar em voz baixa”, “gemer”, dentre outros significados (Alonso Schökel, 1997, p. 166). A conexão com a raiz “recordar” (זכר) do v.7a bem como o uso da preposição בְּ para introduzir o objeto do verbo, parecem indicar “meditar” como uma boa tradução. Nesse sentido, o versículo em questão conecta-se ao Sl 143,5, onde as raízes זכר e הגה também são utilizadas em conjunto (Negoită & Ringgren, 1978, p. 322). Há quem sugira que o uso da raiz הגה no v.7b queira indicar não somente a meditação do orante nas ações de Deus na sua vida, mas também a meditação na Torá, e nas ações de Deus na história do seu povo (Prieto Silva, 2016, p. 208). O objeto da recordação, tanto quanto da meditação, é sempre Deus, a quem o orante se dirige de forma direta, o que vem indicado pelo sufixo de 2ms colocado junto às formas verbais.
Introduzido pela conjunção כִּי com valor enfático, o v.8a apresenta o reconhecimento, da parte do salmista, das ações de Deus em sua vida. O verbo הָיָה é colocado também em posição enfática, deixando, no centro da oração, os termos “socorro”, “auxílio” (עֶזְרָה) que sintetiza o agir de Deus na vida do orante. O termo deriva da raiz עזר, sendo sinônimo de עֵזֶר. Tal raiz transmite a ideia de proteção, tendo geralmente Deus como sujeito. O termo עֶזְרָה ocorre com mais frequência nos salmos onde seu uso indica a ação de Deus em favor do orante, livrando-o de alguma situação de perigo (Lipinski, 2001, p. 13). Algumas vezes é utilizado em paralelo com outros verbos que também indicam a ação salvífica de Deus em favor de alguém (נצל – Sl 70,2) ou com imagens de proteção (מָגֵן – Sl 35,2) (Gonzaga & Telles, 2022, p. 150). Tal imagem de proteção aparece no v.8b: “sombra das tuas asas”. A expressão בְּצֵל כְּנָפֶיךָ ocorre quatro vezes no Saltério: 17,8; 36,8; 57,2; 61,5; 63,8. O uso em paralelo com a expressão בְּאָהָלְךָ no Sl 61,5 permite que se compreenda que é uma possível referência–ainda que não explícita–ao Templo. É possível, também, que a experiência de proteção sentida quando estava no Templo (v.3a) continue presente na vida do orante por detrás do salmo, particularmente quando ele se recorda de Deus (v.7a). Tal recordação das ações de Deus no passado e a sensação de estar protegido por ele faz com que o orante prorrompa em júbilo (רנן). Sua oração não é mera projeção do seu inconsciente e o seu louvor não se baseia em fábulas ouvidas a respeito de Deus. Sua oração confiante é fruto da experiência pessoal e comunitária da ação salvífica de Deus: ela se enraíza na história, sua história pessoal e a história do seu povo.
Depois de recordar e reconhecer as ações de Deus, o salmista manifesta a sua confiança nele no v.9. Dois verbos de ação são utilizados, um tendo o orante e outro tendo Deus como sujeitos. Os vv.8a e 9b podem ser vistos em conjunto, tendo em vista que explicitam, de modo genérico, as ações de Deus em favor do orante, seja pelo verbo “ser” (הָיָה) em conjunto com o substantivo “socorro” no v.8a; seja pelo verbo “sustentar” (תָּמַךְ)no v.9b, acompanhado da expressão “tua direita” (יְמִינֶךָ). Somente no Sl 63,9a, considerando todo o conjunto do Saltério, é que a raiz דבק é utilizada referindo-se diretamente a Deus. No Sl 119,31 ela também ocorre, mas o objeto são os “testemunhos” (בְעֵדְוֹתֶיךָ) de YHWH. Sua primeira aparição na Bíblia Hebraica é em sentido esponsal: em Gn 2,24, indicando a união do homem e da mulher. No livro do Deuteronômio é comum que Deus apareça como seu objeto (Dt 11,22), sendo explicitado esse “apegar-se” como a “observância dos Seus mandamentos” e o “ouvir atento a sua voz” (Dt 13,5). Embora a tradução do termo נֶפֶשׁ por “alma”, no v.9ª, tenha sido já justificada acima, é válido recordar que tal termo pode indicar a totalidade da pessoa. Sendo assim, o salmista quer indicar que adere a Deus totalmente, com todo o seu ser. Interiormente ele deseja Deus e a Ele adere, contudo, tal adesão também se manifesta externamente na observância dos Seus mandamentos, conforme indica o uso da raiz דבק no livro do Deuteronômio.
Prieto destaca que, ao finalizar as duas partes do v.9 com sufixo de 2ms, o salmista quer fixar a atenção do orante em Deus, o grande “tu” do salmo (v.2a), tal como fizera no v.3 (Prieto Silva, 2016, pp. 229-230). Esse versículo sintetiza a relação amorosa entre Deus e o orante, desenvolvida no salmo. O salmista que busca a Deus intensamente (v.2cd); o recorda dia e noite (vv.2b.7b); o encontra no templo (vv.3a.8b); se sente protegido por Ele (v.8a) e o louva (vv.4b.5a.5b.6b.8b). Por fim, resume tudo na experiência de lançar-se para Deus e sentir-se seguro em suas mãos: tua direita me sustenta. Sendo a “direita de Deus” a sua “mão forte” (Sl 89,14), nela o salmista confia, sabendo que Deus a elevará para salvá-lo (Sl 138,7). A menção da “direita de Deus”, a mão que Ele levanta para libertar o homem dos seus inimigos (Sl 45,5), faz com que a segunda parte do salmo se conecte à terceira e última, que traz a imprecação contra os perseguidores que desejam destruir o orante por detrás desta poesia.
A imprecação e a intercessão pelo rei (vv.10-12)
Na oração da Liturgia das Horas, foram deixados de lado alguns salmos onde predomina o caráter imprecatório (Sl 57[58]; 82[83] e 108[109]). De outros salmos, foram tirados apenas os versículos imprecatórios, como no caso do Sl 63(62), objeto de nosso estudo, dos quais foram deixados de fora da Liturgia das Horas segundo o Rito Romano, os vv.10-12: a imprecação e a conclusão, uma vez que esta última está ligada à imprecação. O motivo é a “dificuldade psicológica” de compreendê-los, segundo a IGLH 131. De fato, as imagens fortes trazidas pelas imprecações sálmicas causam certo desconforto ao orante (Zenger, 1196, p. 2). Contudo, deve-se levar em conta tanto o contexto em que os diversos salmos surgiram, bem como considerar que, no Antigo Testamento, a revelação está em progresso. Somente à luz do Novo Testamento certos textos tornam-se mais claros. No caso dos assim chamados salmos imprecatórios, sua chave de leitura neotestamentária poderia ser Ef 6,12, onde o autor sagrado entende que o verdadeiro “inimigo” do homem não é o outro ser humano, mas o que ele chama de τὰ πνευματικὰ τῆς πονηρίας, os “espíritos do mal”.
A imprecação contida nos vv.10-11 começa com uma conjunção com valor adversativo (וְ), marcando uma contraposição e, ao mesmo tempo, uma conexão com o que vem antes. Até então, a oração girava em torno de duas figuras: o “tu” divino, evocado no v.2a e retomado na abundante sucessão dos sufixos de 2ms, e o “eu” do orante, algumas vezes indicado também por meio dos sufixos, ou por meio do termo נֶפֶשׁ ;ou ainda, por meio do binômio נֶפֶשׁ e בָּשָׂר dos v.2cd. Agora é colocado em evidência o pronome de 3mpl הֵמָּה (eles). O salmo agora vai falar dos inimigos e isso clarifica a metáfora da “terra seca, sedenta e sem água” do v.2e: o salmista está sofrendo uma dura perseguição, onde sente sua vida ameaçada.
É digno de nota o modo como cada uma das personagens dessa “oração” é apresentado. Deus é referido pelo “tu”, mas também é invocado pelos termos אֱלֹהִים e אֵל; o inimigo, por sua vez, é indicado simplesmente pelo “eles”, não tem nome. Embora tal anonimato dê margem para que o orante de qualquer época possa identificar tal inimigo com qualquer pessoa ou entidade que promova contra ele uma perseguição, segundo Prieto, tal anonimato também figura, no salmo, como uma forma de menosprezo (Prieto Silva, 2016, p. 241). É certo que o salmista também não é identificado pelo nome, contudo, no decorrer do salmo, ele é identificado por substantivos variados, sua relação com Deus é posta em evidência e, no título, ele se identifica com Davi. Parece possível, pois, considerar como verossímil a afirmação de Prieto.
O mesmo esquema tripartido contido nas duas primeiras partes do salmo (vv.2-6.7-9) também aparece na imprecação dos vv.10-11. Depois de introduzir a figura dos inimigos do orante e apresentar seus planos de morte com o termo שׁוֹאָה, no v.10a, o salmo apresenta a derrocada dos inimigos em três momentos: i) v.10b: irão às profundezas da terra; ii) v.11a: serão entregues à espada e iii) v.11d: serão presa dos chacais. crescente. A primeira referência indica a morte propriamente dita dos inimigos, sua descida ao Sheol. A expressão בְּתַחְתִּיּוֹת הָאָרֶץ ocorre somente aqui e no Sl 139,15, contudo, neste último o salmista dá à expressão um sentido positivo, utilizando-a para indicar o âmbito oculto onde Deus o tecia de modo oculto e admirável. A expressão aparece invertida (בְּאֶרֶץ תַּחְתִּיּוֹת) e com sentido negativo em Ezequiel (26,20; 31,14.16.18; 32,18.24), designando o atuar-se do juízo divino sobre os inimigos de Israel. Tal parece ser o sentido que o salmista quer expressar, embora não apresente diretamente Deus como o agente por detrás da punição que espera seus inimigos (Prieto Silva, 2016, p. 249).
A morte dos inimigos é apresentada como uma morte violenta, por meio da espada (v.11a) e, ainda mais contundente, é o modo como a imprecação é encerrada: os inimigos não terão sepultura, porque se tornarão “presas dos chacais”. De um lado, os chacais relembram o ambiente do deserto, evocado na primeira parte do salmo; de outro, o “não ter sepultura” é, para o homem bíblico, uma terrível punição (Weiser, 1984, p. 504). Tal se constitui num modo de apagar sua memória, de evitar que haja uma mínima recordação de sua anterior existência (Is 14,19-20; Jr 7,33). Talvez o salmista tenha invertido a ordem habitual das sentenças nesse último segmento (v.11b) colocando o objeto em primeira posição justamente para enfatizar tal “apagamento” da memória dos ímpios.
O salmo é concluído pelo v.12, que segue o estilo tripartido de todo o corpo do texto. A referência ao rei o une ao título, servindo como moldura para a oração. O וְ adversativo que abre o v.12 contrapõe a imagem do rei à imagem dos inimigos. Assim como a situação de Davi perseguido no deserto de Judá funciona como uma espécie de situação paradigmática para o orante, também a alegria do rei, em Deus, é uma imagem da alegria que o orante experimentará depois de sua libertação. No centro do versículo está o verbo “alegrar-se” (שָׂמַח), muito frequente nos salmos, indicando, sobretudo, a alegria que o orante sente diante de Deus, particularmente por saber que Ele julga “com justiça” (Sl 67,5). O triunfo do justo sobre os inimigos produzirá alegria, uma alegria “em Deus” (בֵּאלֹהִים). A ênfase no epíteto divino está colocada no início e no fim do salmo.
Os segmentos finais do v.12 fazem uma síntese de todo o salmo, apresentando o destino final dos justos e dos ímpios, “como que em um grande voo místico” (Aparicio, 2006, p. 200). Para os justos, o louvor. Os que “juram por Deus” serão louvados. Embora a preposição com sufixo no final do v.12b seja ambígua, podendo referir-se a Deus ou ao rei, parece mais provável pensar que se refira a Deus, em virtude do paralelismo com o v.12a. A ideia do “jurar por Deus” é presente no Antigo Testamento, particularmente para designar uma especial adesão a Ele, como em Dt 6,13, onde o verbo “jurar” (שָׁבַע) vem colocado em paralelo com os verbos “temer” (יָרֵא) e “servir” (עָבַד). Os inimigos, caracterizados aqui como os que “falam mentira” terão sua boca tapada. Assim é concluída a oração sálmica, deixando em evidência o que cabe e o que se deve esperar de cada uma das personagens que compõem o quadro da poesia: Deus atua como juiz; o orante terá sua confiança recompensada e seu desejo por Deus satisfeito; os inimigos, que fazem o justo sentir-se como num deserto, verão atuar, sobre si, o juízo divino.
Considerações finais
O estudo do Sl 63(62) à luz da Análise Retórica Bíblica Semítica permitiu evidenciar seus dois pólos fundamentais: os âmbitos diurno (vv.2-6) e noturno (vv.7-9). Na primeira parte (vv.2-6) o salmista enfatiza seu desejo por Deus e proclama, em tom futuro, o louvor que lhe renderá. No centro, contudo, está a memória da experiência de Deus no Santuário, que faz com que o salmista proclame que o “amor” de Deus é melhor do que a “vida”. A segunda parte do salmo concentra-se mais no reconhecimento das ações de Deus no passado (v.8), que despertam no salmista a confiança em Deus (v.9). Contudo, ela é iniciada pela explícita recordação de Deus em âmbito noturno (v.7). É um “recordar meditando”, como se o salmista trouxesse à mente, as maravilhas outrora operadas por Deus: na sua história e, quiçá, na história do povo de Israel.
Seu louvorse fundamenta, pois, na história. Deus não somente promete agir em favor do seu povo e de cada justo que é perseguido, mas, de fato, age. A memória, tão central no culto israelita (Ex 12,14–זִכָּרוֹן), é o âmbito no qual se conserva esse “agir” de Deus. Em virtude da menção do Templo na primeira parte do salmo (v.3), tal “memória” parece estar relacionada com a experiência cúltica, uma vez que o culto se fundamenta, em Israel, no agir de Deus no passado, sustentando a esperança em seu agir também no presente e no futuro. Sobre seu leito, o salmista medita não somente nas ações de Deus na sua vida, mas também naquelas que ouviu quando o contemplava no Santuário, especialmente durante o culto, onde via e ouvia o que se proclamava, nas Escrituras, a respeito da “glória” e do “poder” de Deus (v.3b) (Flecha Andrés, 2021, pp. 145-146).
O salmo culmina na imprecação que ocupa os versículos finais (vv.10-11). Embora tais versículos tenham sido retirados do Ofício Divino segundo o Rito Romano, eles têm um elevado valor teológico tanto no contexto do Antigo, quanto do Novo Testamento. No contexto do Antigo Testamento, a imprecação é a manifestação de confiança na justiça divina. Não será o salmista a agir contra seu adversário. Ele nem mesmo chega a citar diretamente Deus como sendo o algoz dos seus inimigos. O sujeito das ações descritas nos vv.10-11 permanece indeterminado e, à luz do título, que provavelmente remete a 1Sm 22 – 24, fica claro que o próprio homem injusto busca seu fim pois, maquinando o mal contra o piedoso, acabará nas mãos de maldosos inimigos, como acontecera com Saul (1Sm 31, 2-13). Lidos à luz do Novo Testamento, por sua vez, os versículos imprecatórios desse salmo fazem pensar em Ef 6,12, onde Paulo afirma quem os verdadeiros inimigos do homem são os “espíritos do mal” espalhados nos ares.
A sede do salmista é, de certo modo, saciada, quando ele se apresenta diante de Deus. Contudo, ela permanece. E ele espera uma saciedade plena no futuro (6a). Em virtude disso, e relendo este salmo à luz do Novo Testamento e do Mistério Pascal de Cristo, Agostinho vai afirmar que o “deserto” é a nossa vida nesse mundo, onde “não devemos amar a saciedade”. Somente na vida futura é que experimentaremos o que o salmista anela no v.6a: ser completamente saciado por Deus: “Aqui é preciso ter sede; lá seremos desalterados. Agora, porém, a fim de não desfalecermos neste deserto, Deus destila sobre nós o orvalho de sua palavra, e não nos deixa inteiramente áridos, de tal sorte que não voltemos ao estado inicial, mas tenhamos sede para beber” (Agostinho, ca. 422/1997, p. 270).
Declaração de contribuição de autoria
Waldecir Gonzaga é o criador e líder do Grupo de Pesquisa Análise Retórica Bíblica Semítica, credenciado junto ao CNPq, do qual participa o segundo autor, Fabio da Silveira Siqueira. Ambos autores trabalharam no levantamento bibliográfico e contribuíram com a tradução do salmo e com a redação do manuscrito final desse artigo. A revisão final e geral ficou ao encargo do primeiro autor, Waldecir Gonzaga.
Conflito de interesse
Os autores declaram não haver conflito de interesses com instituição ou associação comercial de qualquer espécie. De igual modo, a Universidad Católica Luis Amigó não se responsabiliza pelo tratamento dos direitos de autor que os autores efectuem nos seus artigos, pelo que a veracidade e exaustividade das citações e referências são da responsabilidade dos autores.
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Notas do autores
Waldecir Gonzaga
Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. Pós-doutorado pela FAJE, BH, Brasil. Diretor e Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Criador e líder do Grupo de Pesquisa Análise Retórica Bíblica Semítica, credenciado junto ao CNPq. Correo electrónico: waldecir@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/917167801936447,7 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5929-382X
Fabio da Silveira Siqueira
Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio e membro do Grupo de Pesquisa Análise Retórica Bíblica Semítica, credenciado junto ao CNPq. Correo electrónico: padresiqueira@gmail.com, Currículo Lattes:http://lattes.cnpq.br/5937857218924211e, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-5671-3347