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Silva Nogueira, E., Ferreira de Lima, N. (2022). O homem está morto: a antropologia de abraham heschel como caminho de humanismo e crítica à modernidade. Perseitas, 10, 471-494. DOI: https://doi.org/10.21501/23461780.4467

O HOMEM ESTÁ MORTO: A ANTROPOLOGIA DE ABRAHAM HESCHEL COMO CAMINHO DE HUMANISMO E CRÍTICA À MODERNIDADE

Man is dead: Abraham Heschel's anthropology as a path to humanism and critique of modernity

El hombre está muerto: la antropología de Abraham Heschel como camino del humanismo y la crítica a la modernidad

Artículo de reflexión derivado de investigación

DOI: https://doi.org/10.21501/23461780.4467

Recibido: 27 de abril de 2022. Aceptado: 2 de agosto de 2022. Publicado: 3 de agosto de 2022

Emivaldo Silva Nogueira

Narcélio Ferreira de Lima

Resumo

No pensamento do filósofo e teólogo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), o ser humano é colocado em uma posição única diante da transcendência e da natureza; ele é reconhecido como um verdadeiro símbolo de Deus e um participante da vida divina em um contexto de desvalorização e desumanização que vinha se formando desde os primórdios da modernidade. Em diálogo com alguns pensadores contemporâneos, neste artigo propomos refazer os caminhos conceituais e práticos que levaram este rabino a pensar e agir energicamente em favor da reconstrução da natureza humana, e apontar o pathos divino como elemento de solidariedade, e o resgate da ética e da sacralidade humana. Nossa proposta de reflexão está estruturada em torno de três pontos fundamentais: o problema do simbolismo religioso humano em relação a Deus; o pathos divino como ponte para Deus; e o ser humano que é Homem e, ao mesmo tempo, um apelo à ética.

Palavras-chave

Dessacralização; Ética; Heschel; Humanismo; Pathos divino; Ser humano; Símbolo.

Abstract

In the thought of the Jewish philosopher and theologian Abraham Joshua Heschel (1907-1972), the human being is placed in a unique position before transcendence and nature; he is recognized as a real symbol of God and participant of divine life in a context of desacralization and dehumanization that was developing since the dawn of modernity. In dialogue with some contemporary thinkers, in this article we propose to retrace the conceptual and practical paths that led this rabbi to think and act energetically in favor of the reconstruction of human nature, and to point out the divine pathos as an element of solidarity, and rescue of human ethics and sacredness. Our proposal of reflection is structured in three fundamental points: the problem of the human religious symbology in relation to God; the divine pathos as a bridge towards God; and the human being who is Man and at the same time appeal to ethics.

Keywords

Deacralization; Ethics; Heschel; Humanism; Divine pathos; Human being; Symbol.

Resumen

En el pensamiento del filósofo y teólogo judío Abraham Joshua Heschel (1907-1972) se sitúa al ser humano en una posición única ante la trascendencia y la naturaleza; se lo reconoce como símbolo real de Dios y partícipe de la vida divina en un contexto de desacralización y deshumanización que se estaba gestando desde los albores de la modernidad. En diálogo con algunos pensadores contemporáneos, en el presente artículo nos proponemos recorrer los caminos conceptuales y prácticos que llevaron a este rabino a pensar y actuar enérgicamente en favor de la reconstrucción de la naturaleza humana, y a señalar el pathos divino como elemento de solidaridad, y rescate de la ética y sacralidad humanas. Nuestra propuesta de reflexión se estructura en tres puntos fundamentales: el problema de la simbología religiosa humana en relación con Dios; el pathos divino como puente hacia Dios; y el ser humano que es Hombre y a la vez apelación a la ética.

Palabras clave

Desacralización; Ética; Heschel; Humanismo; Pathos divino; Ser humano; Símbolo.

Introdução

Abraham Joshua Heschel (1907-1972) foi um erudito rabino polonês do círculo dos hassidim, corrente de mística e piedade judaica que busca resgatar os elementos essenciais do judaísmo, lançando fortes críticas ao espírito moderno. Foi nesse meio que ele obteve sólida formação espiritual e humana, sendo ascendente e influenciado por ilustres rabinos, incluindo o fundador do movimento, Israel ben Eliezer (1700-1760)1, mais conhecido como Baal Shem Tov (senhor do Bom Nome), e Menahem Mendel de Kotzk2, falecido em 1859. Esses dois representam duas visões judaico-hassídicas marcantes a respeito do mundo: misericórdia e justiça.

Para se ter ideia, “a cultura moderna é uma força muito poderosa, e é necessário um esforço imenso para conservar enclaves com um sistema de defesa hermético. Veja o caso dos amish na Pensilvânia ou dos judeus hassídicos em Williamsburg, no Brooklyn” (Berger, 2000, p. 11). É o que Peter Berger chama de subcultura religiosa de cunho reacionário. Depois de sobreviver ao holocausto e migrar para os EUA no período nazista, Heschel viu a necessidade de abertura ao cristianismo e demais religiões3, o que lhe custou a desaprovação de seus correligionários mais conservadores, porém, trata-se de um dever de consciência e missão que ele entendeu como ética religiosa.

Diante de um mundo cada vez mais globalizado, secularizado e, ao mesmo tempo, estilhaçado e enfermo, as religiões não podem se portar como ilhas, assegura Heschel (1966), mas devem se unir em comunicação e cooperação, visando ajudar o ser humano de hoje a se reencontrar com sua dignidade e sentido, por isso, ele apostará no retorno do transcendente, apresentando a ética e compaixão dos profetas hebreus e uma antropologia que visa resgatar o respeito e sacralidade humana a partir de um autodiscernimento, porque “a autocognição do homem é a mais profunda fonte de religião” (Heschel, 1975, p. 19).

Na Idade Média, uma das perguntas mais centrais dirigia-se à existência de Deus e, para tal, eram elaborados com a escolástica inúmeros tratados acerca do tema, onde muitos desses argumentos rebatiam heresias, até que o movimento moderno de secularização tentou substituir Deus pelo Homem, apresentando-o como baliza do pensamento e da realidade (antropocentrismo). Aqui não se nega a existência da entidade Deus, mas se aposta na autonomia e liberdade do espírito humano como forma de alcançar a verdade da existência: “Cogito, ergo sum”. Mas essa visão autossuficiente não poderia ser concebida hoje como ilusão?

Um novo humanismo não dialético teria sido encabeçado por Friedrich Nietzsche (1844-1900) quando mostrou que a “morte de Deus” não evidenciaria, mas faria desaparecer também o Homem, visto que esses dois teriam estranho parentesco (irmãos gêmeos ou pai e filho). A existência humana vai, então, se reconfigurando a um problema de linguagem, expressão, símbolo ou melhor, “depois, pode-se dizer que a literatura é o lugar onde o homem não cessa de desaparecer em proveito da linguagem. Onde ‘isso fala’, o homem não existe mais” (Foucault, 1994, p. 544).

Na ótica de Heschel (2010), a grande pergunta na pós-modernidade se desloca de Deus para a própria existência humana e se torna cada vez mais instigante: quem é o Homem?4.

A agonia do homem contemporâneo é a agonia de um homem espiritualmente atrofiado. A imagem do homem tem dimensões maiores que a do marco no que se encontra. Para ser humano, o homem deve ser mais que homem. Na existência humana tem um valor divino. (Heschel, 2010, p. 89)

Heschel afirma isso porque, ao que parece, temos um novo tipo de ceticismo. Em um contexto onde se discursa sobre a morte de Deus, junto à indiferença perante o extermínio de milhões de seres humanos na shoáh, vai nos apresentar outro axioma para a atualidade: O homem está morto, mas morreu porque abandonou a justiça,

se o homem pode estar manchado de sangue e ser farisaico, pode distorcer o que sua consciência lhe dita, fazer sabão de carne humana, então como podemos admitir que ele é digno de aproximar-se do Deus infinito e ser guiado por ele? (Heschel, 1975, p. 219)

O problema do ser humano só poderá ser respondido à luz do problema divino, de seu Criador, de quem herdou a imagem e semelhança.

O que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas, ou certas instituições, nos aparecem como não humanas. Tudo isso é da ordem da ilusão. Primeiramente, o movimento humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente. (Foucault, 1994, p. 540)

O ser humano tornou-se um ser esquecido. Mesmo assim, o pensamento hescheliano, embora crítico, não é pessimista para com a humanidade, mas traz grande confiança, porque não se pode confundir a natureza humana com o que se tem feito dela. Há, ao contrário, grande solicitude. O ser humano, na perspectiva de Heschel (1974b), é um “sujeito a procura de um predicado” (p. 199), no entanto,

a procura de Deus pelo homem, não o homem à procura de Deus, é o que se imaginava ser o principal evento na história de Israel. Isto está no âmago de todos os conceitos bíblicos: Deus não é um ser separado do homem e que deve ser procurado, mas um poder que busca, que segue e apela ao homem. O caminho para Deus é um caminho de Deus. (...) O homem não teria conhecido Deus se não tivesse ele se aproximado do homem. A relação de Deus com o homem precede a relação do homem com ele. (Heschel, 1975, p. 253, itálico nosso)

Se Deus sempre toma a iniciativa de buscar o ser humano, revelando aqui um movimento processual e dialogal através de um pathos divino, ideia central no pensamento hescheliano, a humanidade deverá questionar sua solidão. O ser humano está em consonância com o mundo orgânico, é frágil e depara-se diariamente com a morte, mas não pode se esquecer que é contemporâneo do Senhor. “Minoria no reino do ser, o homem encontra-se numa posição intermediária entre Deus e o animal. Incapaz de viver sozinho, tem que comungar com os dois” (Heschel, 1974b, p. 218), Deus lhe fez “pouco menos do que um deus” (Sl 8,6) e pouco acima dos animais. Longe de seu Criador é um egoísta, próximo de Deus torna-se divino. “Se ele atraiçoar a semelhança, perde a sua posição de eminência na natureza” (Heschel, 1975, p. 162). Em resumo, ele é uma eterna preocupação de Deus, um parceiro da vida divina, um consorte.

O homem é mais que aquilo que é para si mesmo. Pode ser limitado na sua razão, perverso na sua vontade, mas encontra-se numa relação com Deus que ele pode trair, mas não pode romper e que constitui o sentido essencial da sua vida. Ele é o nó em que se entrelaçam o céu e a terra. (Heschel, 1974b, pp. 219-220)

A partir desse horizonte, desenvolveremos três pontos que associam a antropologia de Abraham Heschel com a perspectiva de alguns(as) pensadores(as) contemporâneos(as) a fim de aclarar algumas de suas substanciais ideias que tangem a natureza e condição humana na atualidade. Em primeiro lugar, discorreremos em torno do problema do simbolismo religioso e a crítica hescheliana no tocante à substituição de Deus pelo símbolo. Na perspectiva de Heschel, o ser humano é, essencialmente, “símbolo” ou “imagem” de Deus (tzelem Elohim), mas não em sentido convencional, e sim “real”. Em um segundo momento, apresentaremos o pathos divino como aproximação e solidariedade entre Deus e o humano. Por fim, aprofundaremos a identidade cultural e o apelo à ética na pós-modernidade como desdobramento da antropologia de Heschel.

A problemática do simbolismo religioso e o ser humano como símbolo de Deus

Nos estudos contemporâneos do fenômeno religioso, o conceito de símbolo tem sido bastante explorado, sobretudo quando situado no âmbito da cultura humana, como o fez Clifford Geertz (1989), uma vez que essa cultura pode ser definida como “sistema de concepções herdadas” (p. 142) pelo qual o ser humano se expressa. Nessa comunicação, a religião ocupa um papel importante pela sua atuação na vida social, pois ela acaba por sintetizar o ethos de um povo e objetiva ajustar as ações humanas a um plano divino e ordenado (cosmovisão)5.

Toda pessoa que adota uma religião particular ou alguma forma de religiosidade, acaba aderindo, embora não o saiba, a uma visão de mundo e procura dar sentido à existência. Mircea Eliade (1907-1986) e Max Scheler (1874-1928) concebem a religião como uma estrutura real que oferece respostas a pergunta pelo sentido feita pelo ser humano. Abraham Heschel (1975) defende a religião como uma rica e independente fonte de insights e como fornecedora de respostas aos problemas humanos fundamentais.

Em Geertz (1989) a religião é um sistema cultural simbólico e, a fim de melhor aclarar a complexa e ampla noção de “símbolo”, apresenta-nos quatro perspectivas em que o termo é comumente empregado. A primeira denota “qualquer coisa que signifique uma outra coisa para alguém”6, a segunda refere-se aos “sinais explicitamente convencionais de um outro tipo”, a terceira é a “representação oblíqua e figurativa daquilo que não pode ser afirmado de modo direto e lateral” e, por fim, a conceituação que mais lhe agrada: “qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o 'significado' do símbolo” (Geertz, 1989, pp. 67-68). A concepção simbólico-religiosa defendida por Geertz gira em torno da elaboração de um significado cósmico para o esforço humano, é forma de expressão.

No entanto, para Abraham Heschel, a religião não serve apenas para nos ajudar a se comunicar, mas sobretudo para nos aproximar de Deus, porque não seria a expressão ou a simbolização tão essenciais na experiência religiosa quanto a consciência que o ser humano tem do inefável (Heschel, 1974b, pp. 16-17), ou seja, de seu desafio de distinguir entre o exprimível e o que não pode ser traduzido em palavras. Capacidade para se comunicar até os animais dispõem, mas o sentido do inefável é a raiz do espírito criativo que também empresta significado à arte, ao pensamento e à nobreza da vida.

Na ótica de Geertz (1989) “o comportamento humano é tão frouxamente determinado por fontes de informações intrínsecas, que as fontes extrínsecas passam a ser vitais” (p. 69), para Heschel, “uma pessoa sensível sabe que o intrínseco, o mais essencial, nunca é expresso” (Heschel, 1974b, p. 16), esse é o poder do mistério e do sublime que tem tomado o ser humano de surpresa desde os tempos mais remotos de sua história.

Na leitura de Rudolf Otto (1995, p. 12), o inefável não quer dizer que o conteúdo e a forma do fenômeno religioso sejam esgotados e fechados à reflexão, pois não há destruição de seu aspecto racional, refere-se antes à uma experiência que vai além das palavras, tocando de modo especial a dimensão afetiva do crente. Por esse motivo, o sentido de numinoso é, em seu pensamento, sui generis, um objeto de estudo mais que definição e elemento indispensável para uma reflexão em torno da experiência religiosa na qual a consciência pode ser chamada a atenção pelos sentimentos que ela desperta.

A percepção da grandeza do numen provoca na alma humana o sentido de mysterium tremendum, isto é, quietude, reverência, tremor místico, majestas (superioridade absoluta do poder) e orgé (energia), capaz de calar o ser humano e lhe provocar êxtase, contemplação e adoração.

Seria, então, a religião, uma adesão intimista e interior de tal experiência, ou mesmo uma questão de linguagem? Na tentativa de iluminar a identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall (2006) elencou algumas das ideias fortemente difundidas que influenciaram o descentramento identitário global. Uma delas é o pensamento do linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), sobre o qual argumentava que

nós não somos, em nenhum sentido, os “autores” das afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. [...] A língua é um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós. [...] O significado surge nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua. Nós sabemos o que é a “noite” porque ela não é “dia”. Observe-se a analogia que existe aqui entre língua e identidade. Eu sei quem “eu” sou em relação com “o outro” (por exemplo, a mãe) que eu não posso ser. [...] Apesar de seus melhores esforços, o/ a falante individual não pode, nunca fixar o significado de uma forma final. (Hall, 2006, pp. 40-41)

Ora, se nesse raciocínio acima o significado surge nas relações entre semelhança e diferença, então “para justificar e para julgar os símbolos temos necessidade de um conhecimento não-simbólico. Os símbolos são meios de comunicação. Eles comunicam ou nos transmitem o que representam” (Heschel, 1974a, p. 167), por isso não podem ser substitutos de Deus e da espontaneidade da experiência religiosa, pois têm uma natureza ficcional e não vicária, não caracterizam todos os aspectos da vida humana. Se Deus for um mero símbolo, a religião pode tornar-se um “brinquedo de criança” ou uma forma de “solipsismo”7. A simbologia religiosa tem seu valor, mas a presença de Deus a supera.

Em uma análise da experiência religiosa na contemporaneidade, a professora Ales Bello (2018), discorrendo exatamente sobre o sentido do sagrado, acredita que

o encontro com o Outro satisfaz completamente o desejo, porque corresponde totalmente às expectativas humanas, dando contentamento exatamente porque se refere a toda situação particular, iluminando tais situações, dando-lhes um sentido que as relativiza porque as transcende, mas que, ao mesmo tempo, lhes dá vida (Ales Bello, p. 15).

Para Heschel, a experiência de Deus não se diz, vive-se, Ele nunca é um eufemismo ou diagrama, é antes o sujeito supremo de toda realidade, tanto pela certeza hebraica da presença do “Deus vivo” como por ser Aquele que toma a iniciativa na relação transcendental com o ser humano: “Onde estás?” (Gn 3,9). O Deus de Heschel não é um ser desconhecido, mas antes compadecido com a situação humana, Ele tem um pathos, é interessado nos assuntos dos homens e mulheres, aos quais Ele conferiu sua imagem e semelhança.

Também o mistério não é a definição de Deus, mas apenas uma dimensão Daquele que se autocomunica e permite conhecer suas vontades: “Conhece o Deus de teu pai e serve-o de todo o coração” (1Cr 28,9). Portanto, na doutrina hescheliana, a relação Deus-Homem não é reduzida a ideias, mas a uma situação. Seria impróprio empregar o termo autorrevelação para se referir à profecia bíblica porque Deus nunca se revela, mas permanece mistério, continua acima e além de toda revelação porque dá a conhecer apenas uma palavra e nunca sua essência. Deus comunica seu pathos e sua vontade. “Por regra geral Deus é silencioso” (Heschel, 1973b, p. 243), mas nunca o é para sempre ou indiferente à condição humana.

Heschel (1974a, p. 151) faz a distinção entre dois tipos de símbolos. O primeiro tipo são os convencionais, que representam algo por analogia ou convenção, como por exemplo, uma bandeira, e não partilha aquela realidade a qual está representando, mas apenas a sinaliza e tem objetivo de relacionar, associar ou conceder uma determinada entidade. O segundo tipo são os símbolos reais, caracterizados por representar uma entidade e partilhar de sua realidade, como por exemplo, o ser humano.

É importante lembrar que, para Geertz (1989), os seres humanos “não são símbolos eles mesmos, embora muitas vezes funcionem como tal” (p. 68), mas é nessa “brecha” conceitual que entra a antropologia hescheliana:

Um “símbolo real” é um objeto visível que representa alguma coisa invisível. Algo presente que representa algo ausente. Um símbolo real representa, por exemplo, o divino, porque se supõe que o divino reside nele e que o símbolo participa de certo modo da realidade do divino. (Heschel, 1974a, p. 151)

No pensamento hescheliano o ser humano é, antes de tudo, símbolo de Deus, mas não o é em sentido convencional, ou seja, uma substituição daquilo que representa além de nosso alcance, mas o é de forma imediata, pois somente ele recebeu a imagem (tzelem) e semelhança (demuth) do “Rei dos Reis”. Aqui, o mais importante não é dispor de símbolo, mas sê-lo. A vida humana é a única coisa realmente sagrada, a única entidade a qual a santidade está vinculada: “Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2), uma vez que apenas o ser humano recebe, além da imagem e semelhança de seu Criador, a ruach8 divina no ato da Criação, situando-o entre Deus e os animais.

Ser imagem de Deus significa ser seu símbolo, não somente na alma, mas também no corpo, assim, o humano é “ícone” ou reflexo do divino. Somente Deus pode fazer a imagem do ser humano, enquanto que qualquer tentativa de reprodução da imagem divina feita por mãos humanas é imediatamente reprovada como pecado de idolatria: “Não fareis deuses de prata ao lado de mim [comigo], nem fareis deuses de ouro para vós” (Ex 20,23)9. Neste trecho bíblico, como bem observou Heschel (1974a, p. 162), percebemos um jogo de palavras entre itti (“comigo”) e a raiz hebraica ot, que quer dizer “símbolo” (neste caso associado a ídolos), o que poderia ser também traduzido por “não farás meus símbolos”. Os idólatras se assemelham a seus ídolos (Sl 115,8), enquanto que os(as) servos(as) do Senhor devem se assemelhar a Ele, precisamente em justiça e santidade.

A crítica hescheliana ao simbolismo religioso deve-se à busca por um conceito que expresse a relação imediata do ser humano com Deus, porque “para a religião a certeza imediata da fé é mais importante do que toda reflexão metafísica” (Heschel, 1974a, p. 166). Ele vê no espírito analítico moderno a tentação de enquadrar religião em conceitos, métodos e categorias limitadas. Parece já não ser possível falar em religião senão com os estereótipos de mana, tabu, totem, símbolo etc. Porém, jamais o ser religioso, uma vez tomado consciência do inefável, se contentaria em adorar a Deus simbolicamente.

A Bíblia não é uma religião de um Deus desconhecido. Ela está construída sobre a rocha da certeza de que Deus deu a conhecer sua vontade a seu povo. Para nós, a vontade de Deus não é “nem uma metáfora nem um eufemismo”, ela é poderosa e mais real do que a nossa própria existência. (Heschel, 1974a, p. 168)

O ser humano é, portanto, um cidadão de dois reinos: o reino das nomeações e o reino do inefável. No simbolismo ele terá algo para expressar, mas diante de seus problemas centrais, nada ou muito pouco terá a dizer. É por isso que a piedade humana jamais poderá ser reduzida à eloquência. O fato mais importante na relação com o transcendente não é a expressão humana, mas o fato que Deus fala e revela suas vontades.

As mitzvot (mandamentos) são expressões da superação do ego humano, e a adoração é uma resposta humana àquele desafio primordial divino: “Onde estás?” (Gn 3,9). Em resumo, ser humano significa estar relacionado com Deus, de forma primária, imediata, constitutiva e, na doutrina hescheliana, “transcendência ‘simbólica’ não é transcendência – de forma alguma – apenas um enredamento adicional em processos intrapsíquicos ou estratagemas de autoinflação” (Dimas, 2007, p. 13).

Mas para tal é preciso atentar-se que o Deus dos filósofos e da natureza não é o mesmo que o da Bíblia. O primeiro se apresenta sublime demais para o alcance humano, apático para os assuntos do cotidiano do plano terreno. O Deus bíblico é pessoal, “Deus é conhecido em Judá, em Israel grande é seu nome” (Sl 76,1), um ser que se desdobra em amor, compaixão e justiça, que busca incessantemente o ser humano, que se caracteriza por um pathos divino, e o que, por sua vez, se identifica com um ethos, não existindo aqui dicotomia, mas pressuposição entre ambos.

O pathos divino como ponte entre Deus e o ser humano

Se existe uma palavra que ilustre bem todo o pensamento e doutrina de Abraham Heschel é, sem sombra de dúvidas, o pathos divino, conceito que, ao que tudo indica, ele tenha herdado de Sören Kierkegaard (1813-1855) e de seu mestre hassídico Menahem Mendel de Kotzk, pelo menos essa é a hipótese de Paolo Gamberini (De Almeida, 2019, pp. 137-138). Em 1936, a tese doutoral de Heschel foi publicada sob título original alemão Die Prophetie (Os Profetas). Ele acreditava que a teologia do pathos, presente na consciência e no ato profético, poderia iluminar a humanidade nesse momento nebuloso de seu século. Estamos diante de um objeto até então não explorado e que esse teólogo nos trouxe à tona.

Inédita é a surpresa que Heschel apresenta ao campo acadêmico e teológico, pois no interior do próprio judaísmo há uma corrente que até então predominava, trata-se de uma teologia que elucida ao mundo um deus apático, desenvolvida sobretudo por Fílon de Alexandria, Jehuda Halevi, Maimônides e Espinoza, o que também representa a negação do corpo e a dependência do ser humano perante à natureza, evidenciando certa indiferença de Deus para com a humanidade. “Somente Abraham Heschel reconheceu que o pathos divino é o adequado ponto de referência hermenêutica para aquelas expressões antropomórficas de Deus, contidas no Antigo Testamento” (Moltmann, 2000, pp. 39-40). O amor de Deus que busca o ser humano é o pressuposto de toda filosofia e teologia hescheliana.

Em Kierkegaard (2008), o pathos é entendido como condição para a existência, paixão pelo Absoluto (Totaliter Aliter) e também meio pelo qual o ser humano pode compreender a si mesmo, termo que pode vir associado à “paixão” e ao “sofrimento”. Indica uma emoção positiva de ordem passional que transita em três estágios pelos quais o indivíduo entra em relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus: estético, ético e o religioso. O pathos ideal da realidade corresponde à beatitude (felicidade) eterna, por isso o ser humano deve almejar esse último estágio religioso.

Nos termos heschelianos, o pathos é a essência da realidade divina, pois ilustrado no ato profético, mostra uma estrutura sujeito-objeto10, traçando um contraste relacional da experiência humana com a paixão divina. “No pathos, se pensa a Deus como um Amo supremo dos céus e da terra, Quem se vê emocionalmente afetado pela conduta do homem” (Heschel, 1973b, p. 34). Ao contrário da religião dos gregos e filósofos, como já o mencionamos, a qual concebe um deus indiferente e sublime demais para se inclinar ao plano humano e seus interesses, o Deus dos profetas é totalmente interessado e misericordioso ante os problemas humanos, embora permaneça O Santo, o totalmente Outro, transcendente... Mostra-se pai de todos, não apenas juiz; amante, não apenas rei.

A esse respeito escreveu Emilio Baccarini (2009): “paradoxalmente, porém, o pathos é o elemento que acaba com a tranquilidade rigorosa da lógica e cala a linguagem, abrindo as portas do coração do homem a uma compreensão diferente” (p. 437). Pois sabe-se que os profetas não tinham ideias sobre Deus, mas compreensões, eles eram mais testemunhas que espectadores da revelação. A presença de Deus lhes era esmagadora e sua experiência religiosa ocupa-se antes com impulsos, mandamentos, desafios, mais que a discursos metafísicos acerca da natureza de Deus.

Quanto ao ser humano, é aqui objeto da constante atenção divina, de uma “eterna urgência de Deus”. A solidariedade divina é o aspecto fundamental do pathos e o conteúdo da consciência profética, redefinindo-se com isso a ideia de subjetividade humana, pois o ser humano não está sozinho, há um Deus que lhe procura. Logo, o “conhece-te a ti mesmo” é substituído por “conhece o Deus de teu pai” (1Cr 28,9). É somente na presença de Deus que o humano pode reconhecer a si mesmo:

A simpatia é um estado no qual uma pessoa está aberta à presença de outra. É um sentimento que percebe o sentimento diante do qual reage: o oposto à solidão emocional. Na profecia simpática o homem está aberto à presença e a emoção do Sujeito transcendente. Leva em si mesmo a consciência do que está sucedendo a Deus. Por isso, a simpatia tem uma estrutura dialogal. (Heschel, 1973b, p. 13)

Assim, o Deus de Israel, através de seu pathos, lança a ponte entre si e o ser humano, elevando-o de sua solidão e abandono no mundo. A própria Bíblia não nos conta nada sobre Deus em si mesmo, quer dizer, acerca de sua natureza. Tudo o que ela dispõe refere-se às suas relações com o ser humano, revelando mais atos em favor desse último do que “noções” de Deus, como por exemplo criação, salvação, revelação, santificação...

O cogito “solitário” de Descartes (2000, p. 58) é considerado uma das grandes “conquistas” do pensamento ocidental na modernidade, limitando o conhecimento da verdade à razão. No entanto, para Heschel, concordando com Platão (2007, p. 205) , a raiz do pensamento está antes na admiração e “subjetiva é a maneira, e não o objeto de nossa percepção. O que percebemos é objetivo no sentido de ser independente da nossa percepção e corresponder a ela. Nossa admiração radical corresponde ao mistério, mas não o produz” (Heschel, 1974b, p. 30).

O conhecimento de Deus não se dá a partir de uma ideia ou pela força de expressão, mas em um evento, em um encontro com esse pathos ou em uma teofania. Na experiência religiosa, o que deve interessar é a condição total da pessoa, não o que e como ela encontra o sobrenatural, mas por que ela o sente e o aceita. “A alma só comunga consigo própria quando o coração é incitado” (Heschel, 1975, p. 18).

Assim, a pessoa não deve reconhecer a presença de Deus por via teórica, mas por um comportamento, por uma práxis, em sua piedade, porque a fé é um evento. A finalidade da religião é “praticar a justiça, amar a misericórdia e andar em humildade com teu Deus” (Mq 6,8), é na bondade humana que se encontra o divino. O ser humano também é responsável por Deus e ambos possuem uma responsabilidade comum: o significado da criação e da existência humana. É por isso que o movimento hassidista, como também Heschel, jamais admitem separação entre religião e ética.

Quem é o Homem e o apelo à ética

Tentar definir o ser humano hoje não é tarefa fácil. Já não se fazem suficientes as antigas categorias científicas de homo sapiens sem levar em consideração nossa totalidade, isto é, nossa existência, situação, atributos valorativos, etc. O neopositivismo e o racionalismo parecem já não convencer tanto nesse empreendimento. A religião, enquanto experiência humana, sempre se ocupou de nossas questões mais fundamentais. No entanto hoje,

no que gostamos de chamar de vida real, o “sentido”, a “identidade”, o “poder” e a “experiência” estão inextricavelmente emaranhados, implicando-se mutuamente, e é tão impossível fundamentar ou reduzir “religião” a esta última, a “experiência”, quanto a qualquer dos demais. Não é na solidão que se constrói a fé. (Geertz, 2001, p. 164)

Se no período iluminista acreditava-se na ideia de um “sujeito unificado”, hoje conhecemos uma “crise de identidade”, fruto de um processo amplo de mudanças, como observou Stuart Hall (2006), “que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (p. 7), também descentrando ou fragmentando o sujeito.

Naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somos também “pós” relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade-algo que, desde o Iluminismo, se supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa existência como sujeitos humanos. (Hall, 2006, p. 10)

Culturalmente falando, o conceito de identidade ainda é complexo e não conclusivo na contemporaneidade, o que muito ainda apela para seu desenvolvimento. Heschel (2010) observou que, na Idade Média, uma das perguntas centrais se dava acerca da existência de Deus, o que hoje é substituído pela pergunta sobre a nossa própria existência, porque estamos nos deparando com a “perda do sentido de si” ou com um novo tipo de ceticismo:

No passado, a filosofia era motivada por uma série de questões supremas. Posso estar seguro daquilo que sei? Posso estar seguro da realidade do mundo exterior? Atualmente, é a humanidade do homem que não mais é autoevidente, e o tema com o qual nos deparamos é: como pode um ser humano ter certeza de sua humanidade? Na Idade Média os pensadores tentavam obter provas da existência de Deus. Hoje parecemos buscar provas da existência do homem. (Heschel, 2010, p. 40)

O que é caracterizado como “humano” tornou-se adjetivo de fraqueza, ao mesmo tempo em que o ser humano semeia a ilusão de sua imortalidade através do tornar-se “máquina” e adquirir poderes. No campo religioso não foi diferente, já que a religião é tida como produto da experiência humana. Nietzsche fez eclodir a “morte de Deus”, Martin Buber (2003) discursa sobre um “eclipse de Deus” na (pós)modernidade, já Heschel vê um “eclipse da humanidade”. O ser humano continua a desconhecer sua própria natureza e vontade.

Pensar é uma atividade, não a essência, “a ignorância a respeito do homem não é falta de conhecimento, mas sim conhecimento falso” (Heschel, 2010, p. 21). É preciso que não esqueçamos de nossa experiência relacional, tão constituinte quanto a racional, porque, acredita Heschel (1974b),

“a razão não é a medida de todas as coisas, não é o poder que tudo controla na vida de um homem; não é o pai de todas as afirmações. O grito de um homem ferido não é produto de um pensamento discursivo”. (p. 146)

Do mesmo modo, vivemos extasiados a observar o espaço e a procurar vida extraterrena, no entanto, mostramo-nos incapazes de evitar a própria ruína: a guerra, a fome, a violência, a destruição da natureza, injustiças, discrepante desigualdade social que o digam, a exemplo. Ignoramos nosso semelhante que padece a nossos pés. A autossuficiência humana é ilusão, um anestésico ou substituto dessa solidão existencial.

O homem tornou-se um ser esquecido. Conhecemos os seus desejos, os seus caprichos, os seus fracassos. Não conhecemos, porém, seus interesses profundos. Sabemos o que ele faz, não sabemos o que ele intenciona. Tememos muitas coisas e não sabemos a razão do nosso temor. (Heschel, 1974a, p. 15)

A tentativa de reificação do ser humano de hoje não é diferente da do período veterotestamentário e, para usar uma linguagem bíblica, o maior pecado dos homens e mulheres continua sendo o esquecimento de sua identidade, o que gera insensibilidade. Sua ruína é a falta do conhecimento de Deus (Os 4,6). Como seres criados, a humanidade mostra sua dependência do divino. Se a palavra de Deus criou o mundo e os humanos, somente a justiça divina poderá reordená-los à harmonia da Criação. “Deus existe antes das trevas e por cima delas” (Buber, 2003, p. 65) e reconstruir a imagem divina que há em cada homem e mulher significa fazer um caminho de “autodiscernimento”.

Para iluminar na pergunta pela natureza humana e situação social de seu tempo, Heschel não recorreu a Marx, Nietzsche, Weber, Freud ou outro(a) pensador(a), mas a seus antepassados, os profetas hebreus, cuja ética e compaixão ajudaram a compilar a Bíblia e mensagem continua iluminando a humanidade depois de três milênios. Para esse rabino, os profetas representam o gênero humano e tratam de questões centrais da vida humana, são antes testemunhas que narradores de problemas alheios. Tratar da vocação profética e da vocação humana representam a mesma coisa, a mesma experiência e dignidade.

Os profetas não são demagogos nem “populares”, não buscam o aplauso do sistema, por isso constantemente se veem moralmente inadaptados ao status quo de sua sociedade. Em suma, eles são revolucionários, experts nas relações entre Deus e o povo, encarnando a vida de sua nação e distinguindo-se das demais figuras extáticas, porque não se contentam com o êxtase, mas transverberam a palavra na ação. “O profeta não é somente um profeta. É também um poeta, um pregador, um patriota, um estadista, um crítico social, um moralista” (Heschel, 1973a, p. 2), é o homem do pathos.

Se há algo que causa irritação na alma profética é a insensibilidade e surdez à voz de Deus, ao sentido da vida, à falta de conhecimento da palavra de Deus e à maldade e injustiça no mundo. Eles adquirem uma visão e sensibilidade especiais capazes de captar qualquer obscuridade ou ruído.

O profeta é humano, mas emprega notas de uma oitava demasiadamente alta para nossos ouvidos. Experimenta momentos que desafiam nosso entendimento. Não é nem “um santo cantante”, nem “um poeta moralizador”, mas um assaltante da mente. Frequentemente suas palavras começam a queimar onde a consciência termina. (Heschel, 1973a, p. 45)

A simpatia11 profética tem, para Heschel (1973b, p. 30), uma implicação moral porque envolve questões relacionadas entre o bem e o mal, ou precisamente com a consideração sobre compaixão. A seu ver, “o que mitigará a miséria do mundo, a injustiça da sociedade ou a alienação das pessoas a Deus não é o simples sentimento, e sim a ação. Somente a ação aliviará a tensão entre Deus e o homem” (Heschel, 1973b, p. 14). É nesta ortopráxis que a humanidade de hoje poderá encontrar o retorno para o transcendente, o que não quer dizer retorno ao teocentrismo medieval, mas uma atenção ao ser religioso e espiritual, ou o recapturar do eco da voz divina.

Heschel (1966) se via, como sobrevivente da shoáh, uma “marca arrancada do fogo” (p. 1). Ele percebeu que nesse contexto o ser humano, muitas vezes percebendo a luz que vem de seu interior bastante pálida, tênue e súbita, foi conduzido à exaltação e até santificação daquilo que é sinistro e monstruoso. Mas deve haver outra guerra incessante e universal travada contra o que é vulgar e contra a glorificação do absurdo, “podemos ser capazes de explicar que o homem é mais do que homem, que ao realizar o finito ele pode perceber o infinito” (Baccarini, 436). É fácil perceber no autoexame que Heschel faz do judaísmo contemporâneo, uma extensão universal à exigência e ética fundamental, a insistência de que o ser é mais essencial que o ter, e que a ontologia não deve desligar-se da ética.

Foi, portanto, embebido no conhecimento da Toráh e dos profetas do Antigo Testamento que Heschel se viu impulsionado a pensar e atuar em prol da reconstrução da imagem divina do ser humano. Em seu tempo, presenciou um clima de reificação da pessoa humana através da onda crescente do nazismo, das guerras nucleares e tecnologias que acabaram por sinalizar a desumanização da humanidade. Somente um autodiscernimento que possibilite um reencontro com a identidade e clarificação da vida humana poderiam fazer brilhar o respeito e a dignidade daquela imagem divina desfigurada pelas injustiças e corrupções.

A humanidade, ao invés de humanizar, muitas vezes animaliza o ser humano, provoca falta de consciência e o distancia de sua realização. A modernidade tende a minar a existência humana como parceira de Deus na criação. Em nosso tempo, a idolatria do poder impera (Nogueira, 2020). Ao invés de homo sapiens, poder-se-ia falar de uma humanidade consumista, somado a busca constante do mero status social, o que tornou os homens e mulheres cada vez mais indiscernidos, pois mal sabem por que consomem. No entanto, esse mesmo ser humano precisa saber que não está sozinho, que foi feito parceiro de Deus e cocriador com Ele.

Considerações finais

Clifford Geertz (1989, p. 66) procurou, técnica e respeitosamente, se deter à dimensão cultural da análise religiosa e, para tal, acredita que o simbolismo (religioso) é que nos apresenta o conteúdo positivo da experiência religiosa, por sua vez públicos e observáveis. Heschel recorreu às categorias teológicas e antropológicas para fazer compreender o sentido de “símbolo”, esse intimamente ligado à existência humana, mais que a um problema linguístico, exatamente porque acredita que o pensamento religioso deve ser encarado em sua profundidade. Por exemplo, “a ciência não pode ser estabelecida em termos de arte nem a arte em termos de ciência. E por que a fé, para ser válida, deveria depender da justificação da ciência?” (Heschel, 1974b, p. 176).

Havia na razão analítica do século XVII constante preocupação no tocante à natureza, já “a razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao problema das relações entre indivíduo e sociedade, consciência e história, práxis e vida, sentido e sem sentido, vivo e inerte” (Miotto, 1966, p. 8). Nesse horizonte parece supor que Heschel foi influenciado pelo pensamento fenomenológico-existencialista de Edmund Husserl (1859-1938), procurando entender não apenas a natureza em si, como também a condição humana no tempo presente perante um chamado à ética (Heschel, 1975).

A insistência do pensamento hescheliano para com a humanidade une fé, religião e o constante apelo à ética para fornecer à contemporaneidade algum sentido convincente de sua existência. Portanto, essa abordagem prima o “eu ético” e social ante a ontologia porque Heschel acredita que o egocentrismo tem sido, nos últimos séculos, a raiz de muitos males em assuntos humanos, o que significa dizer que nosso comportamento é explícito, no entanto, o implícito está em jogo, ou seja, os valores éticos e morais. Isso justifica a atenção de Heschel ao simbolismo real que é o homem e a mulher, revelando uma confiança inabalável na humanidade (Leone, 2002, p. 204).

É por esse motivo que Heschel não classifica seu pensamento como teologia convencional, ancorada em dogmas, conceitos abstratos, noções ou “clichês” mentais, mas como “teologia de profundidade”, porque trata de batalhas, situações, confrontos da consciência de Deus, envolvimentos e apropriações, mais que doutrinas, especulações, rituais ou lembranças, fazendo jus à experiência profética com o pathos divino.

Como se vê, esse rabino não se identifica com o modo racionalista e analítico recorrente de pensar, nem por isso deve ser equiparado à influência acentuadamente mística e anti-intelectualista de Henri Bergson (1978). Sua dialética entre mística e razão é expressa de modo assistemático com ênfase para o pré-conceitual e experiencial, notadamente nítidos em seus escritos, como bem observa De Almeida (2019, p. 136), unindo paixão ao rigor do método.

Em nossa exposição, compreendemos que a simbologia humana nos termos de Heschel pode ser associada ao protótipo dos profetas hebreus, por sua vez não apenas “mensageiros”, mas também parceiros, confidentes, assistentes da presença divina (Jr 15,19), conselheiros (Jr 23,18), intercessores entre Deus e a humanidade, testemunhas e não apenas parte constituinte do universo. A comum imagem e semelhança de Deus lhes conferem participação na vida divina e essa é a verdadeira simbologia humana, real e sem intermediários.

Portanto, o humanismo de Abraham Heschel não é antropocêntrico ou puramente religioso, embora parta da ideia bíblica de tzelem Elohim (imagem de Deus), mas um humanismo integral e dialogal, porque somente assim o ser humano poderá ser plenamente humanizado e esclarecido, o que não significa fusão, como notou Nogueira (2017, p. 36), mas solidariedade, participação, o compartilhamento de um pathos, um humanismo que também pode ser chamado de “sagrado”.

Conflito de interesses

O autor declara que não há conflito de interesses com nenhuma instituição ou associação de qualquer tipo. Da mesma orma, a Universidad Católica Luis Amigó não é responsável pelo tratamento dos direitos autorais que os autores fazem em seus artigos, portanto, a veracidade e completude das citações e referências são de responsabilidade dos autores.

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Notas de autores

Emivaldo Silva Nogueira

Doutorando em Eaducação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Mestrado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2017). Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás–Bolsista CAPES PROSUC (2020), com estágio doutoral na Pontificia Universidad Católica de Chile–Facultad de Teologia (2018-2019). Professor investigador do Centro de Investigação em Educação da Universidad Bernardo O´Higgins, Santiago (Chile). Correio electrónico: nogueira.aligo@gmail.com. ORCiD: https://orcid.org/0000-0002-4426-3000

Narcélio Ferreira de Lima

Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUCGO), bolsista CAPES/ PROSUC, bacharel em Teologia (2019) e Filosofia (2013) pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF), Fortaleza, Brasil. Correio electrónico: fraternascelius@gmail.com. ORCiD: https://orcid.org/0000-0003-2130-3214


1 As datas de nascimento e morte de alguns autores relevantes são acrescentadas ao longo do texto, seguindo este formato.

2 Enquanto Shem Tov deixava transparecer um hassidismo por misericórdia, compaixão e alegria, Kotzk representava o hassidismo da indignação com este mundo e sentia sua dor. Na observação de Goes Leone (2000, pp. 27-28), Heschel chegou a comparar o sentimento de Kotzk com o de Kierkegaard.

3 Heschel é um dos nomes mais importantes das relações judaico-cristãs de seu século. Encontrou-se pessoalmente com o Papa Paulo VI (1965) nos primórdios do Concílio Ecumênico Vaticano II a fim de acelerar a inocência dos judeus em geral pela morte de Cristo, que por fruto, obteve-se a Declaração Nostra Aetate, pondo fim a um mal-entendido que perdurou por quase dois milênios. Também gozava da amizade pessoal do pastor Luther King, estando presente em vários protestos a favor da liberdade dos negros e direitos humanos. Depois de uma marcha com King em Selma, Alabama, declarou: “Mesmo sem palavras, nossa marcha foi adoração. Eu senti que minhas pernas oravam” (Kimelman, 1985, p. 118).

4 Na literatura hescheliana, o termo Homem deve ser compreendido primeiramente em sentido genérico (homem – mulher), uma vez emprestado da literatura bíblica e do uso científico e corrente de sua época. Também pode-se entender como ser humano enquanto indivíduo ou, em alguns casos, como humanidade.

5 Numa mesma linha temos Peter Berger (1985), que definiu religião como “projeção humana, baseada em infra-estruturas [sic] específicas da história humana” (p. 186), ou seja, apresenta-nos uma substituição da dimensão sub specie aeternitatis para sub specie temporis, também aceitando a definição de sistemas de símbolos fundamentais dos seres humanos, um “edifício de representação simbólica” ou a “ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo” (p. 41), exemplificando com a imagem do dossel sagrado.

6 Nesta mesma perspectiva, Guy Rocher (1971) entendeu o símbolo como aquilo que tem o poder de representar ou substituir outra coisa, expresso em três principais características: significante, significado, significação e duas principais funções sociais: comunicação e participação.

7 Embora o conceito ainda não seja sistematizado na contemporaneidade, pode ser definido como a crença de que só existe o “eu” e os seus respectivos sentidos, uma forma de solidão existencial, o que é amplamente rejeitado.

8 Conforme observou Wolff (2008), o substantivo feminino ruach (רוּחַַ) aparece 389 vezes no Antigo Testamento. Desse total, 378 vezes em textos hebraico e 11 vezes em aramaico. A maioria das vezes se refere a Deus, num total de 136 vezes. Em segundo lugar, designa uma força da natureza, o vento, em 113 casos. E, por fim, 129 vezes se refere a uma força vital ligada a seres humanos e animais e inexistente nos falsos deuses.

9 Este versículo (23) corresponde a Êxodo 20,20 da Bíblia hebraica (Tanakh). Utilizamos aqui a tradução da Bíblia de Jerusalém (2004).

10 Rico de insights, o ato profético, que também é experiência humana de Deus, tem um conteúdo (pathos), uma forma que se dá no evento, um conteúdo da experiência interna (simpatia) e a sensação que o profeta tem de ser dominado por uma força superior, que é a forma de sua experiência interna.

11 “Um sentimento não é uma simples norma relacional. Em contraste com a empatia, que denota viver a situação de outra pessoa, simpatia significa viver com outra pessoa. A característica única da simpatia religiosa não é a autoconquista, e sim a autodedicação; não é suprimir a emoção, e sim dirigi-la novamente” (Heschel, 1973b, p. 12).